Da Cidade do México – Na mundialmente famosa Casa Azul, um espaço no segundo andar de sua arquitetura inusitada abriga algo raro, raríssimo. Num cômodo retangular, colorido por muitas peças de arte e ladeado por estantes de livros antigos, dois balcões permanecem intactos há décadas. Em um deles, uma cadeira de rodas fica estacionada em uma estrutura com adaptações para pincéis e cavaletes ao lado de um pequeno espelho. No outro, uma cadeira de palhinha convida a sentar-se à mesa sobre a qual estão uma paleta de tintas e uma foto em preto e branco. Nela, um homem gordo olha com expressão preguiçosa a fila incessante de turistas.
Ele é o pintor e muralista Diego Rivera, marcando seu espaço de trabalho no mesmo gabinete em que, cheia de dor e fogo criativo, sua mulher por tantos e intensos anos, Frida Khalo, ajeitava seu corpo afetado pela poliomelite e por um terrível acidente de trânsito para criar uma obra única. O México tem muito do que se orgulhar de seus artistas e pode ostentar a felicidade de ter produzido um par como Diego e Frida, gênios de estilos tão diferentes que marcaram, cada qual a seu modo, criações tão instigantes e influentes. O país se prepara, agora, para celebrar os 130 anos de nascimento do pintor, comemorados no próximo dia 8 de dezembro.
A Casa Azul, residência do casal na Cidade do México em diferentes períodos entre o final dos anos 1920 e meados dos anos 1950, é um dos pontos em que a numerosa obra de Diego pode ser apreciada. No imóvel, hoje o museu de arte com entrada mais disputada da capital mexicana, estão, sobretudo, retratos de Frida feitos pelo marido, de quem ela chegou a engravidar, abortando mais de uma vez por conta de seus numerosos problemas de saúde. Ali, Frida e Diego mantiveram uma paixão cheia de reviravoltas, com separações motivadas por traições e reconciliações ardentes.
As paredes azuis e a cozinha, onde ainda hoje estão gravados os nomes dos donos da casa, viram, sobretudo, o diálogo artístico profundo do casal que incentivou ambos a se tornarem as referências que são hoje. Diego, neste caso, pode ser considerado um nome ainda de maior importância, apesar de a popularidade de Frida ser inquestionavelmente maior hoje em dia. Na verdade, foi Diego quem descobriu a jovem Frida Khalo quando ela lhe mostrou uma despretensiosa obra em 1922. Ela era aluna na Escola Preparatória Nacional e Diego, já um artista consagrado, ministrava aulas lá.
Parceria – O encontro dos dois gerou histórias inacreditáveis e obras-primas, elevando a arte no México a outro patamar no cenário da criação contemporânea do século 20. Diego Rivera, nesta época, era um homem de meia-idade e já havia passado uma longa temporada na Europa (entre 1907 e 1921), bebendo nas fontes das vanguardas do Velho Continente. Ele, porém, teve a sabedoria de se deixar influenciar sem perder sua identidade. O que aprendeu trouxe para o México e desenhou a história de sua terra e de seu povo em imensos murais espalhados pelo país.
Já casado com Frida, Diego se aventurou na América, convidado pelo bilionário Nelson Rockfeller – que se encantou com a sua arte e a sua esposa, diga-se de passagem – para pintar um grande mural no Rockfeller Center, cartão-postal de Nova York. Comunista convicto a ponto de, no final da vida, dar abrigo ao revolucionário bolchevique Leon Trótski, que fugia da sanha assassina de Stálin na União Soviética, Diego logo entrou em rota de colisão com o patrão capitalista sobre os rumos do trabalho. Esta seria apenas uma das muitas polêmicas que o muralista colecionou com governantes, poderosos e até colegas de profissão. Era genial, mas também genioso.
Ao longo de sua extensa carreira, Diego Rivera produziu como um louco – aliás, seus detratores sempre insinuaram que ele tinha mesmo alguns parafusos a menos. Se isso contribuiu para sua inquietação em relação ao próprio trabalho, tanto melhor. As obras de Diego contam-se, literalmente, aos milhares. Há murais, alguns com algumas dezenas de metros quadrados de tamanho, salpicados em diversas cidades do México. Além da capital, podem ser vistos na colonial Puebla, na populosa Guadalajara, em estâncias litorâneas.
Roteiro – Quem quiser conhecer mais de sua criação, porém, deve mesmo se concentrar na Cidade do México. Na megalópole, os principais murais criados por Diego Rivera podem ser vistos em órgãos públicos, em museus, em antigas residências. Na pitoresca e emblemática Casa Azul estão expostas muitas telas de diferentes fases. Em suas paredes há quadros que denunciam uma influência cubista, com formas geométricas e jogos de cores que se afastam das figuras humanas que consagraram o pintor. Paisagens europeias ou latino-americanas também eram objeto de seu olhar. É interessante acompanhar essa formação do artista, com seus diferentes momentos estéticos.
Os retratos, sobretudo de mulheres, sempre fizeram parte das preferências de Diego Rivera. Na Casa Azul, reina os de Frida Kahlo. Não poderia ser diferente, afinal, ainda que aqui e ali surja um outro rosto nas paredes da icônica residência. Os outros trabalhos em que o pintor homenageou os muitos amores que teve estão espalhados em coleções particulares, em museus pelo mundo, mas também em espaços especiais, como o belíssimo Museu Dolores Olmedo (ver destaque abaixo).
O homem que amava as mulheres
Dizer que Diego Rivera era mulherengo seria banal demais. Na verdade, ele era insaciável. A palavra “fidelidade” não existia em seu vocabulário e ele amava suas parceiras – ainda que várias ao mesmo tempo – com ardor. Frida Khalo foi a mais famosa delas e uma de suas esposas de fato e direito, mas os casos que o muralista teve ao longo da vida são quase tão incontáveis quanto o número de seus quadros e murais. Aliás, suas experiências de alcova alimentaram sua inesgotável inspiração como artista. Talvez por isso tenha produzido tanto.
Uma prova disso pode ser vista no charmoso e um tanto caótico bairro de Xochimilco, uma região alagadiça da capital mexicana, conhecida como a Veneza local por conta de seus canais e gôndolas coloridas que fazem passeios com turistas. Nela fica o Museu Dolores Olmedo, que abriga uma ampla coleção de obras do casal Diego e Frida. Trata-se de uma quinta habitada por uma linhagem nobre de faisões, que circulam despreocupadamente pelos amplos e bem cuidados gramados. Várias casas, que um dia foram residências da chácara, servem hoje de galerias para os quadros dos dois astros das artes plásticas mexicanas.
O interessante é que a antiga proprietária do espaço, adivinhem, também foi amante de Diego Rivera. Uma das mais belas e para a qual ele concebeu obras com mais carinho. E como também já era praxe, Dolores Olmedo, uma mulher de traços fortes, cabeleira negra abundante e sorriso conquistador, era amiga de Frida Khalo. Diego Rivera adorava se aventurar com as mulheres que, de alguma forma, frequentavam sua casa. Ele não perdoou nem mesmo a cunhada Cristina, naquela que certamente foi a traição do marido que mais dor provocou em Frida.
Dolores Olmedo era uma mecenas e uma mulher cosmopolita. Feminista atuante, era casada com o jornalista inglês Howard Philips, que se radicou no México com a família (tinha quatro filhos com Dolores) e passou a apoiar os artistas locais com suas reportagens. A primeira vez que Dolores viu Diego foi em 1923 e ela estava no auge da beleza. Por conta da atuação de seu marido, ela se tornou, quase naturalmente, a musa inspiradora de toda uma geração de artistas. Daí transformou-se em mecenas, usando sua ótima situação financeira para comprar as obras daqueles jovens pintores.
Diego e Frida eram dois dos artistas preferidos de Dolores, que adquiria suas obras formando um acervo espetacular de ambos. É este tesouro que pode ser visto no museu que leva seu nome, já que em testamento ela estabeleceu que o local deveria se transformar num espaço de exposições. Essa relação aberta de Dolores com o mundo – viveu com o marido por muitos anos sob o mesmo teto sem terem mais nenhuma relação efetiva – facilitou as coisas para o don-juanismo de Diego Rivera. Ela posava nua, com todo seu esplendor, para um artista inspirado e, certamente, também excitado.
Alguns afirmam que Dolores e Diego, na verdade, foram apenas amigos. Ela o socorreu no final da vida do muralista, bancando seu tratamento de saúde e até patrocinando sua última grande viagem ao exterior. Essa versão puritana, porém, é frágil. Diego teria até pedido Dolores em casamento após se afastar de Frida. Suspeita-se ainda que o muralista, já um homem de certa idade, teria se engraçado com a filha adolescente de Dolores, sendo repelido pela moça. Um quadro em que essa jovem posa para Diego Rivera fortalece tal hipótese. A modelo está com cara de poucos amigos.
Diego transpôs para suas telas e murais todas as suas paixões. Da política ao povo mexicano; dos astecas (ele era um fanático colecionador de peças arqueológicas pré-colombianas) aos seus amigos fraternos. Com as mulheres que passaram por sua vida não foi diferente. A cenógrafa e ilustradora russa Angelina Beloff, a pintora e musa de Modigliani Marevna Vorobev, a fotógrafa italiana Tina Modotti, a artista plástica norte-americana Ione Robinson, a atriz Dolores Del Río, a estrela do cinema mexicano Maria Félix, a atriz de revista Lupe Rivas, a poetisa Guadalupe Amor, sua segunda esposa Ema Hurtado. Todas fizeram de Diego um homem inspirado e um amante realizado
Murais – As telas de menor dimensão compõem apenas uma parte – e não a mais importante – do legado deixado por Diego Rivera, que morreu em 1957. O destaque fica mesmo como os murais, e uma parada obrigatória para apreciá-los é o Palácio Nacional, uma das sedes do governo mexicano. Ele ladeia, com sua arquitetura imponente, a imensa Praça da Constituição, onde também ficam a Catedral Metropolitana (com seus muitos séculos de existência) e outros prédios históricos, incluindo resquícios de construções dos astecas, povo que vivia no México antes da chegada dos colonizadores espanhóis.
No segundo andar das arcadas que contornam o pátio central do Palácio Nacional, há cinco murais descomunais que Diego Rivera pintou entre os anos de 1929 e 1951. A principal obra, atualmente em restauração, é formada por um tríptico. O conjunto em três partes está acima da escada central entre os dois andares do prédio e serve como uma espécie de prólogo da história que será contada nesses trabalhos impressionantes. Diego, por meio de figuras relevantes e da reconstituição de episódios centrais da história mexicana, mostra as fases de formação da nação.
Esse grande tríptico é chamado de A Lenda de Quetzalcoatl e faz referência a uma divindade que era cultuada tanto pelos astecas quanto por outros povos que habitavam o México na era pré-colombiana, como os maias e os toltecas. Diego retrata neste mural o choque cultural que ocorreu entre essas civilizações e os navegadores europeus que ancoraram na costa caribenha quando se encontraram, definindo a vitória de uma e a dizimação das outras. Com muitas cores e cenas cheias de movimento, o muralista conta aos mexicanos um pouco de sua trajetória, o que se completa com os outros enormes painéis, três deles abordando a escravização de índios e as guerras coloniais e o epílogo, que mostra a luta de classes numa nação pobre e desigual.
Política – Os murais pintados por Diego Rivera são engajados. É o que se vê em outro local em que uma obra dessa natureza está exposta, o Palácio de Bellas Artes. O prédio já é um espetáculo em si, com um domo arrebatador, o que valoriza os muralistas mexicanos que abriga, como David Alfaro Sisqueros, Rufino Tamayo e José Clemente Orozco. A grande estrela, porém, é mesmo o mural El Hombre In Cruce de Caminos. Nele estão vultos históricos, como Lênin e Marx, denotando as perguntas que o pintor quis fazer ao público: qual o caminho a seguir? O da justiça, que em sua opinião viria com o socialismo, ou o da exploração, representada pelo capitalismo?
O mesmo tom político de esquerda está presente nos murais de um museu que é dedicado inteiramente a Diego Rivera. O Museu Mural Diego Rivera é sede de algumas das obras mais importantes do pintor, como o painel Sonho de Uma Tarde Dominical na Alameda Central. O local foi montado em um prédio de aspecto formal, de fachada de concreto cinza. Parece até um paradoxo com as cores vibrantes que Diego Rivera sempre emprestou aos seus murais. A mensagem de suas pinturas podia até ser pesada e dramática, mas isso era passado com tons vivos e alegres. Só mesmo um gênio para conciliar essas duas características em obras descomunalmente belas.
Os murais esquecidos
Curiosamente, a maior coleção de murais de Diego Rivera em todo o mundo fica em um local que quase ninguém visita. Na portaria do prédio, um guarda pede, burocraticamente, sua identidade, cobra um ingresso de preço módico (cerca de R$ 5 em pesos mexicanos) e olha rapidamente sua mochila. Depois disso, é franqueada a entrada para um tesouro que pouquíssima gente de fora da capital mexicana sabe que existe. Na verdade, boa parte dos moradores locais também ignora que no edifício histórico da Secretaria de Educação Pública, logo atrás da Catedral Metropolitana, no coração da metrópole, está o maior acervo de murais do mais famoso pintor do país.
Em três andares de arcadas históricas, circundando dois imensos pátios internos, estão nada menos que 200 – isso mesmo, 200! – murais pintados por Diego Rivera. E eles são espetaculares. As cenas de todas as regiões do México, das selváticas às litorâneas, estão impressas em impressionantes 1.500 metros quadrados de paredes em que o muralista imprimiu sua arte única. Os murais foram encomendados pelo governo federal e foram pintados entre 1923 e 1928 para fazer a construção ainda mais relevante do que ela é.
O imenso prédio, que toma praticamente dois quarteirões na zona histórica mais valorizada da Cidade do México, foi, no decorrer dos séculos, a administração espanhola nos tempos da colônia, o principal mosteiro religioso da cidade e sede de órgãos de governos já depois da independência. É nesse imóvel cheio de histórias para contar e que resistiu a guerras e terremotos, que índios, trabalhadores rurais, antigos habitantes astecas, colonizadores espanhóis, padres, operários de fábricas e políticos notórios foram pintados pelo muralista. Obras que estão escondidas do grande público, que enfrenta filas na porta do Palácio Nacional para ver murais mais badalados.