Na sala de número 209 do grande edifício cujas janelas proporcionam visão privilegiada da Praça Tamandaré, o artista plástico, professor e escritor Amaury Menezes instalou há anos seu ateliê, onde, aos 86 anos, continua a trabalhar com admirável disciplina. Foi ali, no espaço cheio de retratos e de telas com paisagens goianas, que o também artista e professor DJ Oliveira compareceu quase diariamente em 2005 para relatar passagens da sua vida, desde a infância na cidade natal de Bragança Paulista. Era parte do projeto de celebrar com uma mostra retrospectiva e a publicação de uma biografia dos 50 anos de ofício como pintor, gravador, cenógrafo e muralista reconhecido pela crítica como um dos melhores do Brasil. DJ não chegou a ver o resultado. Morreu em setembro daquele ano, pouco antes de completar 73 anos.
O livro ficou pronto naquela época, mas somente agora, com recursos do Fundo Estadual de Cultura, foi possível publicá-lo. O lançamento de DJ Oliveira – Operário da Arte (Editora Kelps, 103 páginas) será nesta sexta-feira, 18, às 19 horas, no Palácio das Esmeraldas. “O que lamentamos é o fato de o artista biografado não ver realizado o seu sonho”, diz o autor, expressando afetividade cultivada no convívio de décadas.
Nascido em Luziânia, Amaury foi pioneiro em Goiânia, onde chegou em 1936, e a proximidade com o paulista que se mudou para a jovem capital em 1956 teve início na época do Teatro de Emergência, construído em 1959 e que exibia no hall de entrada um mural de DJ com cenas do Auto da Compadecida. Nesse espaço, no Centro da cidade, DJ instalou amplo ateliê no fundo do palco.
“Tendo iniciado suas experiências de cenografia e iluminação ainda no tempo em que trabalhou em São Paulo, quando, na década de 50, integrou a equipe de cenaristas da antiga TV Tupi, foi sob a direção do saudoso João Bennio que Oliveira demonstrou todo o seu talento de cenógrafo”, registra no livro o advogado, escritor, jornalista e publicitário Oscar Dias. Tudo seria demolido e eliminado, com queima de arquivos, incluindo fotos e textos originais do acervo, pela repressão após o golpe militar de 1964. Mas a influência permaneceria marcante na pintura de DJ.
“Suas figuras não são meras figurações, representam uma cena. Como no teatro, contam uma estória. O fundo não é apenas um espaço para valorizar a figura, tem a atmosfera de um cenário que completa a narrativa. Essa é a palavra, sua obra é narrativa, desde uma pequena tela ou estudo como nos maiores murais”, analisa Amaury, salientando que DJ não era de ruptura nem “fases”, mas de “evolução, aprimoramento da técnica ou da percepção”.
Assim, observa, mesmo tendo produzido durante o auge do abstracionismo e da arte conceitual, nunca abandonou a tradição da pintura figurativa. O estágio remunerado na Espanha e os dois anos percorrendo a Europa, a partir de 1968, conhecendo museus, monumentos e galerias, se fariam notar em “uma expressão mais organizada, com uso de cores chapadas em espaços geometrizados” ao compor paisagens, vasos de flores, casarios coloniais, arlequins e saltimbancos, Quixotes, mulheres, vendedores de pipoca e estações ferroviárias, seus temas frequentes.
‘Operário da Arte’
No prefácio, o arquiteto, professor, artista plástico e escritor Elder Rocha Lima destaca a completa dedicação de DJ à arte. “Muito bem dotado fisicamente, o DJ subia num andaime com uma desenvoltura de um acrobata e enfrentava enormes paredes para produzir um painel, tendo antes feito a base do mesmo como um artista renascentista – um estuque bem trabalhado e apto a bem receber uma pintura.”
Daí o Operário da Arte, explica Amaury. “O título do livro lembra a atividade do artista que, especializado na pintura de murais, na qual normalmente os artistas contratam auxiliares para execução dos trabalhos externos, cuidava, ele mesmo, da execução em todas as etapas do trabalho. Desde os esboços à pintura dos azulejos ou cerâmicas, à esmaltação e queima. Até o assentamento dessas peças nas paredes, que normalmente poderia ser feito por operários, ele executava, preocupado com a finalização e autenticidade da sua obra.”
Cuidado extensivo à elaboração das telas e preparação das tintas e demais materiais de pintura. Preferia ele mesmo cuidar, nos mínimos detalhes, dessas tarefas. “Embora executando o trabalho bruto e artesanal de toda sua produção, DJ Oliveira foi um dos artistas de maior sensibilidade que eu conheci.”
Aprendiz e mestre
Dirso José de Oliveira, que se tornaria o DJ da assinatura consagrada, manifestou na infância o interesse pelo trabalho artesanal e pelas artes visuais, o que seria estimulado pelas experiências do adolescente que criava cartazes para o Cine Teatro Bragantino e foi operário de fábrica de tecidos, aprendizado aplicado mais tarde em cenários e serigrafias. Em São Paulo, pôde conviver com pintores modernistas do Grupo Santa Helena, aproximando-se principalmente de Clovis Graciano e Alfredo Volpi. E foi na capital paulista que conheceu Therezinha, goiana de Planaltina, forte motivação para sua mudança para Goiânia, onde se casaram em 1958.
Em 1961, a convite de Frei Nazareno Confaloni e Luiz Curado, DJ assumiu a cadeira de desenho e pintura da Escola de Belas Artes da Universidade Católica de Goiás. “Transformou a sala de aula em oficina, a tarefa de pintar em prazer de pintar e os alunos mais talentosos em aprendizes”, descreve Amaury, ressaltando que o novo professor “foi o responsável pela formação de uma geração de artistas”, entre eles Siron Franco, Ana Maria Pacheco, Sáida Cunha, Iza Costa, Roos, Leonan, Liah. “Ao lado de Confaloni e Enning Gustav Ritter, DJ Oliveira formava o tripé pioneiro que incentivou o movimento artístico em Goiânia e consolidou a aceitação da arte contemporânea em nosso Estado.”
Parte substancial dessa história é contada no livro por pessoas que conviveram com DJ e foram por ele selecionadas para falar de sua obra. Além de Oscar Dias, há comentários de Ático Vilas-Boas da Mota, Hugo Brockes, Juca de Lima, Alexandre Liah, Sáida Cunha, Geraldo Ferraz, Fernando Mendes Vianna, Hugo Auler, Grace Maria Machado de Freitas, Jacob Klintowitz, Mário Margutti, Olívio Tavares de Araújo, Lauro Moreira e Jarbas Silva Marques, convidados por Amaury a colaborar. O livro traz também 74 fotografias, a maioria do próprio Amaury.
Amaury Menezes
Quando DJ Oliveira lhe pediu para escrever sua história, Amaury Menezes diz ter argumentado que melhor seria procurar a ajuda de um escritor ou crítico de arte. Ouviu então que deveria ser o biógrafo porque foi testemunha das realizações e era amigo de longa data. Aceitou assim a tarefa, para a qual tinha mais uma credencial, a extrema organização, apontada pelo pesquisador PX Silveira na apresentação de DJ Oliveira – Operário da Arte, o terceiro livro de Amaury. “Sua preocupação com a informação e o registro começa (…) com o de sua própria obra, que não sai do seu atelier sem antes ser numerada, fotografada e registrada a data e nome de seu destinatário (o que é, desde já, um alívio para seus futuros exegetas).”
Amaury é também autor da obra de referência Da Caverna ao Museu? Dicionário das Artes Plásticas em Goiás, histórico que abarca desde os registros de arte rupestre nas cavernas de Serranópolis até os dias atuais e um dicionário com mais de 800 artistas que marcaram seus nomes em Goiás. O outro livro é Confesso que Chorei ? Uma Agenda de Segredos e InConfidências, elaborado artesanalmente, com ilustrações em aquarela e reflexões posteriores sobre elas. “Eu poderia classificá-lo como uma obra de memória”, diz.
Nessas memórias, comenta as muitas honrarias com que, merecidamente, vem sendo agraciado, como as de artista plástico do 7º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), na cidade de Goiás, e Patrono da Arquitetura, às quais depois se juntariam outras, entre elas o Troféu Jaburu, conferido pelo Conselho Estadual de Cultura, do qual foi membro durante muitos anos. “Acho que, julgando já não me restar muito tempo, pretendam me homenagear em vida.” Modéstia e humildade do mestre, que dá nome hoje a rua e prédio em Goiânia, onde continua a dedicar-se à pintura, após incontáveis exposições no Brasil e no exterior.
Lançamento do livro: DJ Oliveira ? Operário da Arte (Editora Kelps)
Autor: Amaury Menezes
Data: sexta-feira, dia 18, às 19 horas
Local: Palácio das Esmeraldas, Praça Cívica
Seu texto ficou impecável Karla. DJ Oliveira ficou mais bonito na velhice. Com seu figurino excêntrico e o cachimbo parecia um cigano antigo. A barba branca deu um charme ainda maior. Acho que fui a última repórter a entrevistá-lo.