Dias atrás assisti ao filme Aquarius, a produção nacional que tanta polêmica deu por seu elenco e seu diretor se posicionarem publicamente contra o impeachment da presidente Dilma na première do trabalho em Cannes. E uma coisa me chamou atenção, para além das disputas partidárias de ocasião. Guardei aquilo comigo.
Depois fui ver a superprodução Doutor Estranho, mais um divertimento garantido da Marvel. O enredo é sedutor como um bom gibi e extremamente bem realizado em seus efeitos visuais. Mas não foi isso que mais me marcou. Foi outra coisa e, de repente, descobri o que era. E me lembrei, vejam vocês, de Aquarius.
As tramas, claro, não têm nada a ver uma com a outra. Ambas, porém, são sustentadas por algo valioso: diálogos bem escritos. Eles, por consequência, conferem ritmo à narrativa, criam empatia e, sobretudo, nos colocam para pensar para além daquele momento em que passam rapidamente na tela, já substituídos pela cena seguinte. É interessante como a palavra é mesmo tudo, inclusive em uma arte imagética por natureza como é o caso do cinema.
Em Aquarius, a personagem de Sônia Braga (aliás, a atriz está estupenda neste que talvez seja seu ápice de atuação na tela grande) chama às falas um jovem engenheiro ambicioso que quer porque quer comprar seu apartamento em um prédio antigo para poder construir no local um edifício moderno. Ele usa dos piores métodos para conseguir seu objetivo e tenta primeiramente convencê-la e depois intimidá-la com um discurso dissimulado e arrogante.
Em um dos principais embates dos dois surge o que, para mim, é o grande diálogo do filme. Ao tentar desqualificar a moradora que está lhe dando trabalho para vender seu imóvel, o rapaz tenta esfregar na cara da mulher o fato de “ser jovem e preparado”, ter “feito MBA em Business nos Estados Unidos” e a a chama de velha e simplória, o que ela, definitivamente, não é. Ao ouvir isso, a personagem de Sônia Braga reage e coloca o almofadinha em seu lugar, mostrando que de nada vale ele ter diplomas no exterior e ter nascido em berço de ouro se lhe faltam caráter, valores, o mínimo de educação.
“Muitos daqueles que poderiam fazer algo diferente para a coletividade, até por terem tido a oportunidade de estudar, não o fazem. Vários deles, ao contrário, usam dessa posição privilegiada para se dar bem e defender ainda mais exclusão, cassando dos outros a chances que eles mesmos obtiveram.”
Fiquei pensando o quanto aquela discussão ilustra bem a sociedade que estamos construindo. Muitos daqueles que poderiam fazer algo diferente para a coletividade, até por terem tido a oportunidade de estudar, não o fazem. Vários deles, ao contrário, usam dessa posição privilegiada para se dar bem e defender ainda mais exclusão, cassando dos outros a chances que eles mesmos obtiveram. Os exemplos são numerosos. Jovens que pedem o fim da corrupção nas ruas e nas redes sociais, mas que são capazes de pagar elevadas quantias para fraudar a prova do Enem. Gente que fala diversas línguas, conhecem muitos países, têm um ar de refinamento, usam roupas de marca, mas são incapazes de estabelecer um debate civilizado com quem diverge de suas ideias.
Já em Doutor Estranho, o diálogo entre o protagonista e a mestre que o faz descobrir seus poderes gira em torno do tempo e da finitude. “A vida só faz sentido porque sabemos que nossos dias estão contados”, dispara ela. Seu intuito é tirar de seu interlocutor a enorme soberba, a imensa vaidade que demonstra. A morte e o tempo, assim, são antídotos para nossa infindável capacidade de nos sentirmos superiores, para nossa incorrigível ilusão de que estamos no controle de tudo – e, nos casos mais graves, até de todos.
Mesmo sendo dois filmes totalmente distintos – um é cinema “cabeça”, o outro é um exemplo de “blockbuster” –, os dois diálogos os ligaram na interpretação deste humilde fã do cinema que vos escreve. A arte – e com a sétima delas não é diferente – tem o poder de nos fazer parar para pensar um pouquinho. Quem sabe, com sorte, conseguimos até fazer uma autocrítica nessas breves e cada vez mais raras pausas. O rapazote de nariz em pé de Aquarius representa parte de uma juventude que só pensa na carreira, no alpinismo do próprio status, que valoriza o carro do ano, a roupa de marca, o currículo impecável e que se sente no direito de atropelar quem quer que seja para se destacar o mais rapidamente possível.
O herói da Marvel – um renomado e prepotente neurocirurgião que vê a habilidade de suas mãos se esvair em um acidente – é uma metáfora daquele jovem ambicioso que ficou adulto – e só piorou. Ao lidar com casos mais graves, ele recusa. “Não quero manchar meu currículo”, justifica. É rico e tem uma invejável coleção de relógios, uma Lamborghini envenenada, mas também ossos que se quebram como os de todo mundo, tendões que se rompem como os de qualquer mortal.
O franguinho que fez MBA e se considera superior e o médico que se sente Deus têm muito, muito em comum. E ambos têm muito, muito a nos dizer da sociedade em que lutamos para sobreviver, das humilhações a que estamos expostos, da ausência de discernimento a que assistimos cotidianamente, nos mais deploráveis comportamentos, nas piores ações, nos argumentos mais infelizes que se podem conceber.
“O franguinho que fez MBA e se considera superior e o médico que se sente Deus têm muito, muito em comum. E ambos têm muito, muito a nos dizer da sociedade em que lutamos para sobreviver, das humilhações a que estamos expostos, da ausência de discernimento a que assistimos cotidianamente, nos mais deploráveis comportamentos, nas piores ações, nos argumentos mais infelizes que se podem conceber.”
Ainda bem que continuam a existir moradoras de prédios velhos como aquela que Sônia Braga interpreta. Ela valoriza o que ainda há de humano neste mundo em que a ascensão social parece ser o que conta e nada mais. Ainda bem que continuam a existir alguém que diz para o dono de si que ele, na verdade, não é dono de nada. Ainda bem que existe o cinema para falar disso e nos fazer refletir a respeito. A arrogância anda solta e, se não ficarmos atentos, ou sucumbimos a ela ou ficamos anestesiados diante de tais barbaridades.
É um grande cirurgião, rico e cheio de empáfia, é? MBA em Business, é? Se acha muito bom, muito melhor, a última Coca-Cola do deserto por conta disso, é! Vai assistir a um filme, vai! Quem sabe você aprende alguma coisa antes que a morte o colha, sem olhar o seu currículo!