Quando dedicou aquele que é seu livro mais conhecido a Lourenço de Médici, o duque de Urbino, Maquiavel tinha a esperança de que o pequeno tratado que escrevera sobre a arte de governar, batizado de O Príncipe, poderia lhe granjear as graças do poderoso aristocrata italiano e livrá-lo do ostracismo político. Para sua decepção, o duque não deu a menor importância à obra. Em contrapartida, o livro de Maquiavel atrairia o interesse de outro membro da família Médici: Catarina, a filha adolescente de Lourenço, mais tarde coroada rainha da França.
Segundo muitos estudiosos, foi sob a influência dos ensinamentos de Maquiavel que Catarina de Médici arquitetaria, em 1572, um dos episódios mais sangrentos da história francesa: o massacre da Noite de São Bartolomeu, quando foram assassinados milhares de protestantes. Mais do que uma disputa religiosa, a matança teve motivações políticas. A rainha católica Catarina visava fortalecer o reinado do filho, Carlos IX, um monarca fraco e carente de apoio, eliminando os seus adversários reunidos em torno da figura carismática de Henrique III de Navarra, que convertera-se ao protestantismo e era sucessor ao trono da França.
Mesmo nos dias atuais, quando mais nada parece nos espantar no campo político, O Príncipe ainda é capaz de chocar pela forma crua como Maquiavel expõe suas ideias. Entre os muitos polêmicos “conselhos” que oferece aos governantes, Maquiavel adverte-os de que eles precisam aprender a “não ser bons” e alerta-os de que, na impossibilidade de conquistar o inimigo, deve-se simplesmente exterminá-lo – este último, parece que seguido ao pé da letra por Catarina de Médici e seus asseclas.
Não é à toa que O Príncipe é até hoje classificado como uma espécie de manual do cinismo na política. E o adjetivo “maquiavélico” tenha se tornado sinônimo de perfídia e má-fé.
No entanto, esta é uma interpretação ligeira e injusta do legado de Maquiavel. Para além da contextualização histórica que deve ser feita de sua obra – a Itália do pensador florentino era um aglomerado de principados independentes imersos numa guerra fratricida, e Maquiavel sonhava com a unificação do país –, o que precisa ser destacado do seu pensamento é a dignidade que ele confere à política.
Maquiavel separou os princípios políticos dos morais e religiosos porque considerava que eles pertenciam a campos distintos e que misturar política e religião tinha como resultado apenas corromper a ambas. Também julgava que quem está preocupado exclusivamente com a salvação da sua alma não deve se imiscuir nos assuntos políticos. Para Maquiavel, o que interessa à política são os destinos deste mundo em que vivemos e não a possibilidade de recompensa, ou de danação, do indivíduo isolado após a morte.
É nesse sentido que deve ser compreendida a virtude (virtù) maquiavélica. Esta é uma virtude política, que responde ao apelo do mundo público. Mais do que uma virtude, é um virtuosismo – é a habilidade que, na visão de Maquiavel, todo aquele que aspira a ser um grande líder político precisa ter. Alguém com o talento, a criatividade e a disposição de atender ao chamado de seu tempo e de se mostrar à altura dele.
O prêmio para quem se arrisca no terreno da política é a chance de obter a glória e o poder. Mas ela também requer uma boa dose de sacrifício e altruísmo e jamais poderia ser reduzida a mero instrumento de enriquecimento pessoal.
Sacrifício? Altruísmo? Estas são palavras que, sem dúvida, devem soar como um escárnio para uma parcela considerável de nossos políticos profissionais contemporâneos, os quais se julgam muito, digamos, “maquiavélicos”.
Trecho de O Príncipe
“Então, quem se torna príncipe mediante o favorecimento do povo, deve manter-se amigo do povo, e isso é muito fácil porque os do povo desejam apenas não ser oprimidos. Quem se torna príncipe contra a opinião do povo e através do favorecimento dos poderosos deve, antes de mais nada, procurar conquistar apoio do povo, o que se consegue facilmente fazendo com que o povo se sinta protegido. Devido ao fato de os homens, quando recebem benefícios de quem somente esperavam mal, se obrigarem ainda mais para com o benfeitor, os do povo, quando assim beneficiados, logo tornam-se mais amigos desse príncipe do que se ele tivesse sido levado ao poder por favorecimento deles. E um príncipe pode conseguir isso de muitas maneiras, da quais não se possa traçar uma regra certa porque elas variam conforme as circunstâncias. Apenas concluirei que é necessário a um príncipe que o povo lhe vote amizade; do contrário, fracassará nas adversidades.”