Em versos famosos do poema Traduzir-se, musicado posteriormente pelo cantor e compositor Fagner, Ferreira Gullar avisava:
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
Outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão:
outra parte, estranheza
e solidão:
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?
O poeta que nos deixa agora só pode, realmente, ser compreendido em partes. Todas elas formam um todo, plural, múltiplo, cheio de nuances, que abraçou causas e se arrependeu, abandonando-as. Ele colecionou obras singulares, transitou por movimentos, se mostrou livre, corajoso, até temerário em certas ocasiões. Fez muitos amigos, mas não se esforçou em mantê-los se isso subentendesse atropelar seus princípios, suas ideias. As transformações, enfim, integram a personalidade de Ferreira Gullar. Talvez por isso ele tenha conseguido construir um legado tão variado.
Nascido em 10 de setembro de 1930 em São Luís do Maranhão – estado de Gonçalves Dias, como gostava de lembrar –, José de Ribamar Ferreira, desde cedo, mostrou interesse pela literatura. Aos 13 anos escreveu seu primeiro poema, publicou o livro de estreia aos 19 e com este trabalho, A Luta Corporal, deu as primeiras sinalizações de uma estética diferente que depois viria a ser conhecida como Concretismo. Depois disso, como um estouro de manada, Ferreira Gullar não mais parou e se firmou, em cerca de 60 anos de atuação, como um nome de referência em muitas áreas.
Ferreira Gullar esteve com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e com Décio Pignatari no início do Concretismo, mas passou a não se identificar mais com o movimento. A explicação mais simples para essa mudança de rota está no que veio fazer depois, batizado de Neoconcretismo, ao lado de artistas plásticos como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os concretos eram pródigos em regras – algumas até matemáticas –, bem diferente da estética pertencente à “Teoria do Não-Objeto” a que se aliou posteriormente, algo muito mais libertário, menos afeito a normas, mais criativo em suas possibilidades.
A arte, aliás, esteve ao lado de Gullar tanto quanto a poesia. Se os versos o fizeram conhecido nacional e internacionalmente, levando-o a postular um Nobel de Literatura e a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, a pintura e a escultura eram paixões não menos intensas. E ele escreveu bastante sobre essa área, lá nos anos 1960, em críticas e resenhas em jornais e revistas, como também mais tardiamente, já nas décadas de 1990 e 2000, quando lançou volumes de grande lucidez teórica e olhar clínico único, como Relâmpagos.
Trecho de Relâmpagos
“No exercício da crítica de arte sempre busquei, de uma maneira ou de outra, falar da obra enquanto materialidade significante; experiência sensorial, sensual, afetiva. Se também tentei às vezes situá-la cultural e historicamente, ou vê-la como continuidade ou ruptura do processo artístico, procurei sempre apoiar tais avaliações na obra enquanto experiência fenomenológica.
(…)
Toda obra de arte atinge nosso olhar como uma inesperada fulguração, um relâmpago. Atrevi-me algumas vezes a tentar fixar esse relâmpago em palavras.”
Nos anos 1960, Ferreira Gullar levou seu ativismo da arte para a política. Filiou-se ao Partido Comunista, tornou-se presidente do Centro Popular de Cultura da UNE, o famoso e tão perseguido CPC, e ajudou na criação do provocador Grupo Opinião, ao lado de Oduvaldo Viana Filho e Paulo Pontes. Membro do governo Jânio Quadros, época em que conseguiu fundar o Museu de Arte Popular em Brasília, em 1961, entrou logo na mira da ditadura militar após o golpe de 1964. Mas foi depois da decretação do Ato Institucional Nº 5, em 1968, que a barra pesou para seu lado.
Obrigado a se refugiar no exílio, Ferreira Gullar denunciou no exterior as atrocidades que o então governo brasileiro infringia aos seus opositores. Por onde passou (Moscou, Santiago, Lima), tornou-se espécie de centro gravitacional para quem, como ele, precisou fugir do País para não cair nos porões da ditadura. Por incrível que possa parecer, seu nome ganhou ainda mais projeção por aqui justamente no momento em que mais tentavam mantê-lo à distância. É dessa época aquela que é considerada sua obra-prima, Poema Sujo, escrito após uma luta com a criação que durou meses, passou por muitos endereços e que foi suscitado definitivamente depois de notícias perturbadoras vindas do Brasil e nostalgia tensa.
Trecho de Poema Sujo
Turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
Após voltar ao Brasil, o poeta voltou com tudo, lançando obras como Na Vertigem do Dia, Barulhos, Cidades Inventadas e diversas antologias. Ele, que havia começado no jornalismo como revisor da revista O Cruzeiro e integrou o corpo editorial de O Pasquim, retornou à imprensa como articulista de grandes jornais brasileiros. Foi uma voz ativa no processo de redemocratização, estava na linha de frente do movimento das Diretas Já, defendia ideais de esquerda. Mas, como em outras áreas, também mudou nesse campo. Aos poucos, deslocou-se mais para o centro e transformou-se em um crítico contumaz de partidos a que antes se aliara.
No teatro e na música, Gullar também deixou sua marca. Sua versão para a peça Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, com Antônio Fagundes interpretando o protagonista, levou o Prêmio Molière de Melhor Texto, algo ainda inédito em se tratando de uma tradução. Ele, assim, deixava clara a sua recriação da obra. Na MPB, é autor da letra de um clássico de Heitor Villa-Lobos, a belíssima O Trenzinho do Caipira. Também compôs em parceria com Caetano Veloso (Onde Andarás?), Milton Nascimento (Bela Bela), Paulinho da Viola (Solução de Vida), Sueli Costa (Escuta Moça) e Adriana Calcanhoto (Definição de Moça).
Um lado mais privado – e doloroso – da vida do poeta foi aberto por ele mesmo quando se envolveu no debate das leis antimanicomiais no Brasil. O escritor teve dois filhos com esquizofrenia. O que tinha o quadro mais grave recebeu tratamento em uma clínica especializada. O que apresentava sintomas mais leves acabou morrendo em 1992 de cirrose hepática. Gullar colocou o dedo na ferida ao falar de seu drama e de sua aflição com a cobrança de que as famílias deveriam cuidar de seus doentes. Em artigos no jornal Folha de S. Paulo, ele denunciava a falta de vagas para tratamento psiquiátrico e revelava o quanto era complicado lidar com essa situação.
Ferreira Gullar era assim. Ele não media palavras para expressar o que pensava. Poema Sujo está recheado de desabafos a que ele soube dar um tratamento estético adequado e genial. Não corria de polêmicas, não fugia das brigas, não se escondia em opiniões inodoras. Gostassem ou não do que tinha a dizer, ele dizia assim mesmo. Por outro lado, também não se consternava em admitir equívocos, erros, arrependimentos. Com seu jeito um tanto ansioso, não raro atropelando palavras, Ferreira Gullar morre no momento em que era considerado o maior poeta brasileiro.
Trecho do poema Homem Comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esqueimento
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.