Em futuro não muito distante, porque nele já reconhecemos uma caricatura do momento atual, a tecnologia terá influência e controle ainda mais determinantes. De banais atividades cotidianas às profundezas das relações afetivas, chips e gads vão moldar comportamentos e induzir pensamentos e emoções.
Na fusão completa de realidades, a concreta e a virtual, como se situará o ser humano? Ou indo mais longe: quem será esse humano em tão intensa interatividade com uma inteligência artificial cada vez mais onipresente e poderosa?
Com episódios independentes, porque cada história tem enredo próprio surpreendentemente original, Black Mirror, da Netflix, só merece o rótulo de série porque há um mote, o avanço tecnológico e suas implicações. Nesse espelho escuro, a imagem surge distorcida, risível, assustadora e instigante ao revelar anseios, fraquezas e perversidades.
A primeira impressão é de um mundo bem mais evoluído. Um cenário escandinavo de ordem e limpeza, com arquitetura e paisagismo impecáveis e funcionalidade plena. Anos-luz distante da miséria de locais em guerra, assolados por epidemias, violência e fome, exposta como dor perene, incurável, que vai sendo aceita sem grande repercussão mesmo ocorrendo na vizinhança, como se fosse o destino natural dos excluídos da sorte ou destituídos de competência para estar entre os mais afortunados.
Mas a assepsia absoluta e os mais avançados recursos não demoram a se mostrar insuficientes para garantir uma vida alegre e saudável. Ao contrário, acentuam certa claustrofobia e solidão. Seria o melhor dos mundos, com aparatos sofisticados para garantir eficiência e conforto, porém, seus habitantes, mesmo no comando do arsenal high tech, continuam reféns de si próprios ? em grau até mais elevado, porque tantas distrações e apelos externos os distanciam de verdades interiores que, ao emergir como potencial destrutivo, confirmam quem de fato determina o jogo.
Criadores de maravilhas, semideuses prepotentes, instintos domesticados, certezas inabaláveis, nada resiste à humanidade essencial que se manifesta em desejo, paixões e angústias, sujando o que parecia sem máculas, desestruturando alicerces que se supunham sólidos. Lá estão, desnorteados e frágeis, homens e mulheres à mercê de uma busca ancestral, envolvidos em tramas cujos temas são velhos conhecidos: exercício de poder em que o maior perigo está tão próximo que não é notado, as “boas” intenções de conselheiros mais realistas do que o rei; a dúvida corrosiva do ciúme, as traições e deslealdades; a exploração exercida por uma cúpula de ambição desmedida e escrúpulo nenhum; o vazio insuportável da perda e o desamparo diante da morte; a vaidade que exige confirmação e aplauso incessantes, desvio equivocado da necessidade vital por compreensão e amor; o prazer sádico ao experimentar uma maldade inerente; a manipulação imposta pela oferta incessante de entretenimento vulgar, que embota sensibilidade e razão; o medo; o tédio; o sonho de eternidade.
Ao jornal The Guardian, o roteirista, humorista e comentarista britânico Charlie Brooker explicou o título da série que criou, cuja terceira temporada foi lançada no final de outubro. “Se a tecnologia é uma droga ? e parece mesmo ser uma ? então quais são precisamente os efeitos colaterais? Este espaço ? entre apreciação e desconforto ? é onde Black Mirror está localizada. O ‘espelho negro’ do título é um que você encontrará em todas as paredes, em todas as mesas, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, um monitor ou um smartphone.”
A sátira consiste em que esse espelho, para o qual se esmeram mentes tão brilhantes, continue a refletir a imagem de gente confusa, desnorteada e sofredora, perdida na escuridão da ignorância sobre si mesma. Black Mirror é atordoante ao alertar para o perigo de um conhecimento mais e mais aprimorado, mas controlado por pessoas alienadas, atrofiadas, sem empatia. Algo bem próximo do estrago de permitir que uma criança brinque com faca amolada.
Confira abaixo o trailer da 3ª temporada da série: