Uma surpresa digna da melhor ficção, Neruda, que volta a entrar em cartaz em Goiânia durante a mostra O Amor, A Morte e As Paixões nos cinemas Lumière do Shopping Bougainville, consegue revelar mais sobre o ícone da literatura chilena do que a maioria das cinebiografias tradicionais, ao narrar a perseguição política sofrida pelo poeta durante os anos 40, quando ele entrou na clandestinidade por ser comunista. Indicada ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, a produção é protagonizada por Luis Gnecco e Gael García Bernal e dirigida por Pablo Narraín, de No e Jackie.
No final dos anos 40, Pablo Neruda (Luis Gnecco) é, além de um intelectual reverenciado, um nome atuante da esquerda, destacando-se como senador pelo Partido Comunista do Chile. Porém, com o avanço da política anticomunista na América Latina no pós-guerra, o escritor entra na clandestinidade, tornando-se um fugitivo. No seu encalço está o incansável inspetor Peluchonneau, vivido pelo mexicano Gael Bernal, que odeia comunistas em geral e nutre um misto de fascinação, inveja e desprezo pelo poeta.
Provocativo, o escritor brinca com seu projeto de algoz, deixando de presente para ele um livro policial a cada escapada, subvertendo o jogo de gato e rato a todo momento. Na primeira parte do filme, a impressão é que estamos diante de uma cinebiografia tradicional, daquelas que se prendem apenas a diários ou fatos registrados historicamente, mas logo o cheiro mofado de arquivo se dissipa e a neblina típica dos melhores romances de mistério envolve a tela do cinema.
Entre uma troca de esconderijo e outra, o diretor e roteirista apela para a ficção abertamente, permitindo-se inventar e colocar falas na boca deste monstro sagrado da literatura latino-americana, Prêmio Nobel de Literatura de 1971. À imprensa Larraín argumentou que, embora a vida política e literária do poeta seja bastante conhecida, não se sabe o bastante sobre detalhes da sua intimidade. Por isso, além da ficção para suprir várias lacunas, o cineasta valeu-se inclusive de improvisações no set de filmagem.
Deve-se a essa ousadia, justamente, o grande encantamento do filme. As pressões do governo autoritário e elitista que persegue Neruda, as limitações do projeto de justiça social do Partido Comunista, a miséria do povo ? concretudes óbvias e que se espelham em toda a América Latina ? tornam-se ainda mais críveis com a ajuda providencial da ficção. Aos poucos, a narrativa se confunde e o jogo de exercício literário torna-se tão inebriante quanto um livro de Raymond Chandler.
Peluchonneau despreza o poeta, acusando-o de ser um representante do que hoje se denomina “esquerda caviar” ou dizendo que suas fãs o imaginavam fazendo amor com uma rosa na boca. O inspetor, que narra o filme em off, como nos clássicos romances policiais, ganha em densidade à medida que percebe que não é ele, necessariamente, o predador nessa caçada. Embora perdido como um personagem de um filme noir, o policial continua determinado em sua missão.
Neruda, claro, quer escapar, mas não sem antes extrair muito lirismo. É nesse período que ele escreve Canto Geral, um dos pilares de sua carreira, mas, quando o filme começa, o poeta não esconde certo tédio por ser obrigado a declamar para os ávidos fãs ? “eu quero escrever os versos mais tristes esta noite”… A grande fuga, além de uma grande inspiração, é também uma chance de heroísmo e o escritor sai dessa aventura atravessando os Andes montado num cavalo e se refugiando na Argentina. Quando recebeu o Prêmio Nobel, ele descreveu o episódio com tintas fantásticas, dizendo que seu cavalo sangrava “pelas patas e narinas”, “atravessou círculos mágicos” e assistiu a cerimônias rituais em que vaqueiros dançavam para um crânio de boi.
Carisma
Gnecco e Bernal são uma dupla e tanto, complementando-se como seus personagens. Das cenas mais engraçadas, como o poeta travestido no bordel, ou nas mais dramáticas ? é de uma beleza singular o abraço de Neruda na índia que mendigava ?, o carisma de Gnecco é irresistível, mesmo quando evidencia a vaidade exacerbada do artista militante ou suas contradições. Bernal, por sua vez, está impecável ao apresentar um personagem que começa caricato para ao final se transmutar em algo muito além do estereótipo.
Era dada como certa a indicação do longa ao Oscar de filme estrangeiro, caso de No , de 2012, o último da trilogia do diretor sobre a era do ditador Pinochet, mas desta vez Pablo Larraín ficou de fora da festa de Hollywood. Os outros longas da trilogia Pinochet são Tony Manero (2008) e Post Mortem (2010). Filho de um casal de políticos conservadores, o cineasta lançou no ano passado O Clube, sobre a pedofilia na Igreja, além de ter dirigido Jackie, ainda inédito no Brasil, sobre a era Kennedy.
Confira abaixo trailer do filme:
Excelente texto, Rute, quero ver o filme. Você me convenceu!