(Seleção de Luís Araujo Pereira)
[1]
MINUTE PROLOGUE
I’ve been listening to all the dissension
I’ve been listening to all the pain
And I feel that no matter what I do for you
It’s gonna come back again
But I think that I can heal it
I’m I think that I can heal it
I’m a fool but I think that I can heal it
with this song.
…
PRÓLOGO BREVE
Não pude deixar de ouvir essa discussão
Não pude deixar de ouvir esses gritos de dor
E sinto que faça o que fizer
de novo voltarão
Mas penso que sou capaz de os curar
Mas penso que sou capaz de os curar
Sou louco mas penso que sou capaz de os curar
com esta canção.
[2]
SNOW IS FALLING
Snow is falling.
There is a nude in my room.
She surveys the wine-coloured carpet.
She is eighteen.
She has straight hair.
She speaks no Montreal language.
She doesn’t feel like sitting down.
She shows no gooseflesh.
We can hear the storm.
She is lighting a cigarette
from the gas range.
She holds back her long hair.
…
A NEVE CAI
A neve cai.
Há uma mulher nua no meu quarto.
Os olhos pousados na carpete cor de vinho.
Tem dezoito anos.
E os seus cabelos são lisos.
Não fala o idioma de Montréal.
Não se quer sentar.
Não parece ter a pele arrepiada.
Ficamos os dois a ouvir a tempestade.
Acende depois um cigarro
no aquecedor de gás.
E deixa cair os seus longos cabelos para trás.
[3]
LETTER
How you murdered you family
means nothing to me
as your mouth moves across my body
And I know your dreams
of crumbling cities and galloping horses
of the sun coming too close
and the night never ending
but these mean nothing to me
beside your body
I know that outside a war is raging
that your issued orders
that babies are smothered and generals beheaded
but blood means nothing to me
it does not disturb your flesh
tasting blood on your tongue
does not shock me
as my harms grow into your hair
Do not think I do understand
what happens
after the troops have been massacred
and the harlots put to the sword
And I write this only to rob you
that when one morning my head
hangs dripping with the other generals
from your house gate
that all this was anticipated
and so you will know that it meant nothing to me.
…
CARTA
O modo como assassinaste a tua família
nada significa para mim
enquanto a tua boca percorre o meu corpo
Eu conheço os teus sonhos
de cidades arrasadas e cavalos em fúria
do sol demasiado perto
e da noite sem fim
Mas isso nada significa para mim
ante o teu corpo
Sei que lá fora uma guerra ruge
que tu transmites ordens
e bebés são afogados e generais degolados
Mas o sangue nada significa para mim
pois não altera a tua carne
Que a tua língua saiba a sangue
não me surpreende
enquanto os meus braços crescem no teu cabelo
Não penses que não compreendo
o que acontece
depois de as tropas serem massacradas
e as putas passadas à espada
Escrevo isto só para te roubar o prazer
quando uma manhã a minha cabeça
estiver dependurada com a dos generais
do portão da tua casa
Só para que saibas que previ tudo
e que isto nada significa para mim.
[4]
THE DRAWER’S CONDITION
ON NOVEMBER 28, 1961
Is there anything emptier
than the drawer where
you used to store your opium?
How like a black-eyed susan
blinded into ordinary daisy
is my pretty kitchen drawer!
How like a nose sans nostrils
is my bare wooden drawer!
How like an eggless basket!
How like a pool sans tortoise!
My hand has explored
my drawer like a rat
in an experiment of mazes.
Reader, I may safely say
there’s not an emptier drawer
in all of Christendom!
…
O ESTADO DA MINHA GAVETA
EM 28 DE NOVEMBRO DE 1961
Poderá existir algo mais vazio
que a gaveta onde
costumavas guardar o teu ópio?
Algo como uma mulher de olhos negros
convertida em margarida vulgar
no meu belo armário de cozinha
Como um nariz sem narinas
é a minha gaveta nua de madeira
Como uma cesta sem ovos
ou uma lagoa sem tartarugas
A minha mão como um rato
explorou essa gaveta
numa experiência labiríntica
Posso-vos afirmar com toda a segurança
que não existe gaveta mais vazia
em toda a cristandade!
[5]
QUEEN VICTORIA AND ME
Queen Victoria
my father and all his tobacco loved you
I love you too in all your forms
the slim unlovely virgin anyone would lay
the white figure floating among German beards
the mean governess of the huge pink maps
the solitary mourner of a prince
Queen Victoria
I am cold and rainy
I am dirty as a glass roof in a train station
I feel like an empty cast-iron exhibition
I want ornaments on everything
because my love she gone with other boys
Queen Victoria
do you have a punishment under the white lace
will you be short with her
and make her read little Bibles
will you spank her with a mechanical corset
I want her pure as power
I want her skin slightly musty with petticoats
will you wash the easy bidets out of her head
Queen Victoria
I’m not much nourished by modern love
Will you come into my life
with your sorrow and your black carriages
and your perfect memory
Queen Victoria
The 20th century belongs to you and me
Let us be two severe giants
(not less lonely for our partnership)
who discolour test tubes in the halls of science
who turn up unwelcome at every World’s Fair
heavy with proverb and correction
confusing the star-dazed tourists
with our incomparable sense of loss
…
A RAINHA VITÓRIA E EU
Rainha Vitória
Sabias que o meu pai e todo o seu tabaco te amam?
Eu também te amo em todas as tuas formas
virgem delgada e esquiva com a qual qualquer um se deitaria
alva figura flutuante entre barbas alemãs
a instrutora mesquinha dos pesados mapas vermelhos
solitária enlutada por um príncipe
Rainha Vitória
sinto-me frio e húmido
sujo como um telhado de vidro de uma estação
sinto-me como uma exposição de ferro fundido vazia
exijo adornos em tudo
porque o meu amor se foi embora
Rainha Vitória
levas um cilício debaixo das tuas rendas brancas
por favor sê breve com ela
e fá-la ler pequenas bíblias
enquanto a açoitas com um espartilho mecânico
quero-a pura como o poder
quero a sua pele ligeiramente bolorenta debaixo do saiote
por favor apaga da tua memória os complacentes bidés
Rainha Vitória
não estou muito instruído acerca do amor moderno
queres entrar na minha vida
com as tuas penas e as tuas carruagens negras
e a tua memória intacta?
Rainha Vitória
o século XX pertence-nos. A ti e a mim
Sejamos dois férreos gigantes
(não menos solitários apesar da mútua companhia)
que tornem transparentes os tubos de ensaio nas antecâmaras da ciência
e apareçam inoportunos em todas as Feiras Mundiais
carregados de provérbios e censuras
para aturdir os turistas deslumbrados pelas estrelas
com o nosso incomparável sentimento de perda
Perfil
Leonard Norman Cohen foi romancista, poeta, compositor e cantor. Nasceu em Montreal, em 21 de setembro de 1934, e morreu em Los Angeles, em 7 de novembro de 2016. Combinando atividades de escritor com as de músico, transferiu-se para os Estados Unidos, onde consolidou a sua carreira. Com essa guinada, acabou se tornando um dos grandes músicos do século 20, tão grande quanto Bob Dylan, para fazer apenas uma comparação. Suas canções são inspiradas, líricas, melancólicas, delicadas e, por estas e outras virtudes, conquistaram um público enorme e aficionado. O recitativo de sua voz baritonada quando sussurra “Lullaby” é um prazer estético que não pode ser medido. Nunca é demais dizer que, em Cohen, poesia e música só funcionam amalgamadas. Seu êxito artístico pode ser comprovado pelo sucesso da canção Hallelujah, do álbum Various Positions (1984), que foi interpretada por cerca de 200 cantores em várias línguas, fenômeno que foi objeto de um documentário da BBC Radio. Publicou dois romances, 13 livros de poemas e gravou 14 discos originais. Em 1997, a editora portuguesa Assírio & Alvim publicou a segunda edição de Filhos da Neve, uma antologia bilíngue de poemas traduzidos por Jorge Sousa Braga e Carlos Tê, que reúne textos dos seguintes livros: Let Us Compare Mythologies (1956), The Spice-Box of Earth (1961), Flowers for Hitler (1964), Parasites of Heaven (1966), New Poems (1968) e The Energy of Slaves (1972). Do conjunto reunido nessa antologia, ERMIRA selecionou os poemas que estão estampados nesta coluna, preservando o padrão da língua escrita em Portugal.
Buena pagina… Muchas gracias, Un saludo