Eduardo Gonçalves de Andrade, o Tostão, é um cronista fundamental para o entendimento da evolução (ou involução) do futebol brasileiro das últimas décadas. Campeão da Copa do Mundo pela mítica seleção de 1970, abandonou o esporte precocemente (aos 26 anos) devido ao descolamento de retina no olho esquerdo. Formou-se em medicina logo em seguida, atividade que exerceu por quase 20 anos, e nas últimas duas décadas voltou ao futebol, agora na condição de cronista privilegiado do que acontece dentro e fora das quatro linhas.
Diferente da maioria dos comentaristas esportivos, Tostão não se apega a filigranas táticas ou chavões para explicar um jogo, um time ou um atleta. Longe disso, ele quer mais entender do que explicar. No fundo, diz, o acaso no jogo sempre teve uma importância negligenciada pela crônica esportiva, pelos “idiotas da objetividade”, como alfinetou certa vez Nelson Rodrigues, jornalista e escritor (também um inspirado cronista esportivo) que Tostão rememora em Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos – Um Olhar sobre o Futebol, livro lançado há pouco pela Companhia das Letras.
O foco do livro é a seleção brasileira, mas, a partir de suas memórias e observações, Tostão dá uma aula sobre o jogo no Brasil e no mundo, sempre de forma contextualizada. Ele dividiu 60 anos de futebol em três partes, enfocando a seleção e o futebol brasileiro a cada 20 anos, partindo dos anos 50 do século passado até a combinação a que se chegou nos anos 2000, que ele chama de “conciliação entre a ciência e a improvisação”, o encontro do preparo técnico com a fantasia produzida pelos craques.
Não supervalorizar filigranas táticas não deve ser entendido como desdém às inovações técnicas que foram sendo introduzidas no jogo ao longo do tempo. Pelo contrário, pelo texto do ex-craque do Cruzeiro e da Seleção Nacional, entende-se claramente como funcionam os tão propalados esquemas táticos e como eles podem e devem funcionar a serviço do espetáculo. E eles estão bem explicados no livro.
“Uma das funções dos treinadores e dos sistemas táticos é reprimir e controlar os devaneios individualistas e valorizar mais o coletivo”, opina na análise da vedetização que os técnicos de futebol ganharam nos últimos anos no Brasil, coincidentemente no período em que o futebol nacional mais definhou (anos 1990/2000).
Esses 4-3-3, 3-2-2-3, 4-4-2, 4-3-2-1, 4-2-4 e suas variações são configurações dos jogadores em campo, uma forma de jogar nascida na Inglaterra nos anos 20 do século passado e aprimorada 50 anos depois pelos mesmos ingleses, que marcaram época com a vitoriosa seleção da Copa de 1966. A liga que organiza o campeonato inglês é a mais antiga do mundo, data de 1863. Tostão vê neles pioneirismo dentro e fora de campo até hoje, na organização do espetáculo. No ano seguinte, o esporte chegou ao Brasil pelas mãos de Charles Miller, filho de inglês com brasileira.
Para os não íntimos do esporte, ensina Tostão, esses esquemas nada mais são do que a disposição dos jogadores em campo, onde um 4-4-2, por exemplo, significa jogar com uma linha de quatro defensores (dois zagueiros e dois laterais), outra linha de quatro no meio campo (contendo dois volantes ? jogadores mais de marcação ?, e dois meias que se aproximam mais dos atacantes, mas que também participam da marcação quando o time perde a bola) e dois atacantes mais próximos ao gol, que também participam da pressão pela tomada da bola.
É como jogam hoje os maiores clubes do mundo, como o espanhol Barcelona, o alemão Bayer de Munique, o também espanhol Real Madrid, o inglês Chelsea e outros grandes europeus, que optam mais pelo 4-3-3, com pequenas variações. Segundo Tostão, essa forma de jogar só começou a ser copiada no Brasil recentemente, com os técnicos Mano Menezes, no Grêmio, e Tite no Corinthians, que levou o clube brasileiro ao título mundial em 2012, derrotando o Chelsea.
Não é só futebol
Tostão não se considera um intelectual, apesar de seus textos serem sempre recheados de referências filosóficas, literárias, históricas e até psicanalíticas, área que ele também estudou. Na época das concentrações no Cruzeiro, revela que levava livros literários e uma vitrola onde rolavam discos de MPB e samba-canção, enquanto os colegas ouviam Jovem Guarda e jogavam baralho e sinuca. Raul Plassman, o goleiro, dizia que ele era “estranho”. A escrita dele é, no fundo, uma boa forma de interpretar o Brasil pelo esporte mais popular do mundo, algo sobre o qual, paradoxalmente, muito pouco se escreve no País. E esse pouco está devidamente referenciado por ele no livro.
Culto e invariavelmente crítico, suas análises reproduzem a lucidez, o bom senso e a elegância que Tostão levou por um tempo também às TVs, como comentarista do esporte. Primeiro na TV Bandeirantes em 1994, ano que marcou sua volta definitiva ao meio futebolístico para a Copa daquele ano, e depois no canal pago ESPN, que deixou após a Copa de 1998.
Tímido assumido, deixou a TV por sempre se sentir desconfortável diante das câmeras, admite. “Ficava tenso nas gravações e programas ao vivo.” Chegou a protagonizar um programa próprio na ESPN (Um Tostão de Prosa) e coleciona episódios folclóricos dele, como na entrevista com o escritor Luis Fernando Verissimo, em que muitos brincam que entraram mudos e saíram calados. Noutro episódio, na Copa de 1998, relembra a bola fora que deu ao dizer numa transmissão ao vivo que o zagueiro Júnior Baiano cometera uma “baianada”. “Se fosse hoje, milhares de pessoas me criticariam nas redes sociais. Eu teria de me retratar.”
Tostão também admite ser um homem analógico, apesar de admirar a internet. Não usa redes sociais, não tem blog, só usa celular para ligações e ainda escreve a mão para depois enviar por e-mail suas colunas aos jornais. Seus textos semanais são publicados na Folha de S. Paulo, no mineiro O Tempo (onde sai maior, com comentários sobre os times mineiros), na Gazeta do Povo (Curitiba) e no Jornal da Tarde, de Salvador. Outros diários também o reproduzem, como O Popular, de Goiânia.
Para manter sua independência como cronista, revela ter recusado convites da CBF (para diretor da seleção) e para ser técnico de clubes. Também evita convescotes com jogadores e técnicos. Lembra incompreensões que gerou por comentários que fez sobre Felipão e Ronaldo Nazário, por exemplo. “Perco a informação, mas não perco a independência.”
Ele cobriu in loco todas as Copas do Mundo de 1994 a 2010 (viu a de 2014 de casa por recomendação médica), num intensivo com colegas de imprensa que o fez conhecer bem as relações do meio. E jornalistas e editores têm muito a aprender com Tostão. Sem soar professoral, relata o que faz e o que não faz, no que seria uma boa lição a repórteres para uma saudável e necessária equidistância para se cobrir o esporte (como de resto, várias outras editorias).
Na convivência com repórteres do mundo todo nos centros de imprensa, ele relata o árduo trabalho nas coberturas (“trabalham tanto que não pensam na própria saúde”), mas não deixa de incluir a imprensa esportiva na longa lista de relações espúrias que ajuda na decadência do futebol brasileiro, aprofundada a partir dos anos 90.
Por fim, sugere e até brinca com falhas históricas desse jornalismo. “Sinto falta, na história do futebol brasileiro, de quatro investigações profundas que ainda não foram feitas pela crônica esportiva: os detalhes de uma reunião que teria ocorrido em Brasília, entre o ditador Médici e os dirigentes da antiga CBD, que resultou na saída de João Saldanha da seleção, antes da Copa de 1970; se Ronaldo, na Copa de 1998, teve uma convulsão ou um piti; qual foi o conteúdo da preleção de Felipão no vestiário antes do jogo contra a Alemanha, e, por fim, se dona Lúcia realmente existiu”.
Dona Lúcia foi a suposta autora da carta de apoio ao técnico Luiz Felipe Scolari, que o coordenador técnico Carlos Alberto Parreira leu em entrevista coletiva, após a derrota brasileira por 7 a 1 para a Alemanha, nas semifinais da Copa de 2014, jogo esse também esquadrinhado por Tostão no livro. Como se vê, não é só dentro de campo que o Brasil anda sofrendo por problemas técnicos.
Título: Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos
Autor: Tostão
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 208
Preço: 39,90 (livro), 27,90 (e-book)