Três meses após a declaração da independência, a 4 de julho de 1776, na Filadélfia, o destino dos Estados Unidos da América ainda era uma incógnita. A guerra contra a Inglaterra estava longe de ser decidida em favor das colônias rebeladas e a probabilidade de uma derrota dos norte-americanos, naquele momento, era bem concreta. Para vencer, não bastava contar só com a coragem dos soldados reunidos sob o comando do impetuoso general Washington – que se tornaria o primeiro presidente do país –, mas também era preciso lançar mão das estratégias menos belicosas e mais sutis da diplomacia.
Embora em desvantagem com relação à Coroa britânica no plano militar, no campo diplomático, os EUA dispunham de um trunfo que se revelaria poderosíssimo. Em nítido contraste com a situação atual, quando a maior potência do planeta está prestes a assumir as feições beligerantes e agressivas de Donald Trump, a face com que aquela nova e recém-liberta nação do Novo Mundo se apresentava ao resto do mundo era bem mais atraente e romântica: a de um povo sequioso de liberdade, em combate a uma ordem arcaica e corrompida.
E foi empregando esse poder de sedução, como o porta-voz de sua terra natal, que um senhor de 71 anos, um tipo bonachão e sempre bem-humorado, apesar da saúde um tanto precária, e que atendia pelo nome de Benjamin Franklin, realizou uma verdadeira façanha diplomática.
Em meio à moda masculina de perucas, meias de seda e mesuras exageradas das cortes aristocráticas europeias, esse homem que preferia se vestir e comportar com simplicidade tornou-se uma das primeiras celebridades dos EUA. Antes de se consagrar como um dos heróis da Revolução Americana, Benjamin Franklin já era conhecido em toda a Europa por seus talentos como escritor, cientista e inventor. Entre as suas numerosas criações – a maior parte fruto de um espírito, neste ponto bem norte-americano, muito mais prático do que teórico – estão o para-raios e os óculos bifocais.
Além desses atributos, Franklin não só inaugurou a diplomacia norte-americana, como também foi o maior diplomata de todos os tempos na história dos Estados Unidos, como destaca Walter Isaacson, autor de uma biografia sobre esse personagem fascinante (Benjamin Franklin – Uma Vida Americana, Companhia das Letras). Combinando com incrível habilidade o romantismo e o idealismo de um revolucionário que luta pela liberdade e o cálculo frio de um agente de Estado movido pela realpolitik, Franklin alcançou a proeza de convencer a monarquia francesa a apoiar a causa dos norte-americanos. A ajuda providencial dos franceses, que deslocou suas tropas para o outro lado do Atlântico, comandadas por Lafayette, além de emprestar vultosas somas aos rebelados, foi decisiva para a consolidação da independência dos EUA.
Curiosamente, na ânsia de combater os seus eternos inimigos ingleses – e principalmente se vingar da derrota sofrida para a Grã-Bretanha, na Guerra dos Sete Anos –, a Coroa francesa negligenciou uma ameaça que se mostraria depois bem real: ao se aliar aos rebeldes norte-americanos, ela estava inadvertidamente fortalecendo o republicanismo em seu próprio quintal. O resultado, como se sabe, foi a Revolução de 1789.
Porém, nos meses que seguiram à independência dos Estados Unidos, esse perigo ainda parecia distante, e a França vivia uma verdadeira lua de mel com os norte-americanos, principalmente com Benjamin Franklin. Este só rivalizava com Voltaire em popularidade na França.
Sua presença era disputada nos salões das damas da aristocracia e requisitada na corte, sua inteligência e sua conversa afável encantavam os philosophes – de Condorcet a Diderot – e o povo o reverenciava comprando medalhões, estampas e gravuras com seu retrato. Como afirma Walter Isaacson em sua biografia, para os franceses, aquele homem que mesclava os dotes do cientista que “desafiara os raios” e do tribuno em combate pela liberdade era um símbolo “tanto da virtuosa liberdade da fronteira romantizada por Rousseau como da sabedoria racional do iluminismo defendida por Voltaire”.
Caráter nacional
Como se não bastassem as suas realizações como cientista e político, Franklin também contribuiu para forjar o que poderíamos chamar de uma identidade nacional norte-americana, sustentada nos valores da classe média. Em obras que se tornaram verdadeiros best-sellers nos EUA ainda no período colonial, como o Almanaque do Pobre Ricardo, Benjamin Franklin exaltou a sabedoria do “homem comum”, dando lições de autoaperfeiçoamento para cultivar virtudes pessoais como a diligência, a frugalidade, a honestidade e a disposição para o trabalho duro. O próprio Franklin foi um self made man. Começou a trabalhar ainda na infância na fábrica de velas da família e exerceu diversas profissões até se estabelecer como um próspero impressor que se deu ao luxo de aposentar por volta dos 50 anos para se dedicar à ciência e à política.
Lidos na perspectiva de hoje, esses escritos permeados por um pragmatismo filosófico pouco profundo assemelham-se aos manuais de autoajuda. No entanto, no entendimento desse homem que desempenhou um papel fundamental na fundação dos EUA, a democracia norte-americana retiraria sua força justamente do que ele denominava de “pessoas medianas” – seriam elas que formariam a classe dominante de cidadãos norte-americanos, comprometidos com o bem comum e avessos a qualquer privilégio aristocrático baseado no nascimento e numa rígida divisão social hierárquica, como era a realidade do Velho Mundo.
Segundo afirma Walter Isaacson, muitos dos críticos contemporâneos de Benjamin Franklin o censuram por sua visão de mundo pouco elevada, centrada num materialismo exacerbado, que só se preocuparia com os ganhos pecuniários. Por essa ótica, dentre os founding fathers (os pais fundadores dos EUA, como são chamados os líderes políticos que assinaram a Declaração de Independência, entre os quais incluem-se George Washington, John Adams e Thomas Jefferson), Franklin seria o “yuppie fundador” do país e seu legado estaria na origem do consumismo e da obsessão com o sucesso financeiro tão associados à imagem dos norte-americanos.
No entanto, é preciso lembrar que o enaltecimento do trabalho e da poupança por parte de Franklin contrastava com sua rejeição do luxo e da riqueza excessiva, sobretudo aquela que derivava do direito de herança e da adquirida ociosamente mediante a posse de grandes propriedades. Tanto que chegou a defender um tributo sobre as grandes fortunas, embora, por outro lado, fosse conservadoramente contrário a programas sociais que protegessem os mais pobres, por acreditar que eles poderiam conduzir a população carente a uma situação de dependência do Estado.
Em contrapartida, Franklin se envolveu em diversos projetos voltados para a comunidade, como a criação de bibliotecas e universidades. Poucos antes de morrer, aos 84 anos de idade, em abril de 1790 (menos de um ano após a eclosão da Revolução Francesa), ele determinou em seu testamento que parte de sua fortuna deveria ser destinada à criação de um fundo de estímulo a jovens empreendedores.
De acordo com Walter Isaacson, Frankin representa uma vertente do caráter norte-americano que valoriza o pragmatismo em detrimento do romantismo; a benevolência, no lugar da cruzada moral (ele sempre foi um defensor da tolerância religiosa e abominava qualquer tipo de dogma); a mobilidade social, e não uma elite estabelecida; as virtudes da classe média, e não aspirações mais nobres e etéreas. Se essa visão de mundo é “pouco elevada”, não se pode negar que ela provinha de um homem que tinha profundas convicções democráticas e que – apesar de ter demorado a mostrar repúdio à escravidão, o pecado original da nação norte-americana – nunca duvidou que a humanidade só avançaria com mais igualdade e liberdade.