Em 1992, Leonardo Vieira surgiu como um meteoro. No papel do Coronelzinho da novela global Renascer, ele tornou-se o galã do País. Bonito, sorriso perfeito, derretia o coração das mulheres – e certamente de muitos homens também. Ele passou a interpretar na TV os papéis que cabem a homens que chamam a atenção pela beleza: mocinhos românticos, sujeitos sensuais, heróis aventureiros. Protagonizou cenas sensuais em novelas e filmes, era fotografado com pouca roupa para revistas, virou garoto-propaganda em comerciais, era o par perfeito em bailes de debutantes.
Isso foi há quase 25 anos. O tempo passou e Leonardo Vieira manteve uma carreira que alternou momentos melhores e piores. Marcou presença em produções de sucesso como a novela Senhora do Destino e a minissérie Os Maias, mas também se viu envolvido com trabalhos de qualidade inferior, como o enredo rocambolesco de Os Mutantes e personagens das tramas bíblicas da Record. Investiu também no teatro e no cinema, fazendo, entre outros filmes, Veias e Vinhos, adaptação de João Batista de Andrade para o livro de Miguel Jorge sobre a chacina da família Mateucci, em Goiânia, nos anos 1950.
Tudo o que leram acima, com o currículo do ator, foi para situar um profissional que se vê agora no centro de uma discussão que, incrivelmente, eclipsa sua carreira por conta de uma questão que deveria ser estritamente pessoal. Eu mesmo só abordo este assunto aqui, em um site jornalístico, porque foi o próprio Leonardo Vieira quem decidiu levar a discussão para o âmbito público. Na verdade, ele não teve muita escolha. Levado pelo furacão, viu um ato privado tornar-se tema nacional, com consequências absurdas.
No final do ano, o site de celebridades EGO, ligado ao portal Globo.com, publicou fotos de Leonardo Vieira beijando um homem ao final de uma festa. As imagens se disseminaram como um rastilho de pólvora. Muitas manchetes de outros sites – que insistem em mentir que fazem jornalismo – aumentaram o tom do sensacionalismo. Mesmo o ator não estando mais no auge, foi lembrado que o camarada que um dia foi o galã do País, na verdade, é homossexual. Daí, as coisas se agravaram, já que o ator passou a receber ataques e ameaças homofóbicas na internet.
Isso tudo motivou Leonardo Vieira a se manifestar publicamente. Ele publicou uma carta em forma de manifesto declarando-se gay e perguntando a razão de tanto barulho em torno disso. “Nunca escondi minha sexualidade, quem me conhece sabe disso. Não estou ‘saindo do armário’, porque estive dentro de um. Também nunca fui um enrustido. Meus pais souberam da minha orientação sexual desde quando eu ainda era muito jovem. No início não foi fácil para eles, pois somos de famílias católicas e com características bem conservadoras, mas com o tempo eles passaram a me respeitar e aceitar a minha orientação. Eles puderam perceber através da minha conduta que isso era apenas um detalhe da minha personalidade. Eles entenderam que o filho deles podia ser uma boa pessoa, honesta, bom caráter, bom filho, bom amigo, mesmo sendo ‘gay'”, escreveu ele (ver carta na íntegra abaixo)
Em outros trechos, Leonardo Vieira fala do peso que é se declarar homossexual em um país cheio de preconceitos como o nosso, algo que ele pôde comprovar com as muitas ofensas recebidas. “Agora, pessoas do público as quais dediquei meu tempo, atenção e carinho me atacam nas redes sociais de maneira vil e violenta, porque ‘descobriram’ que eu sou gay. Eu nunca disse que não era, só não saí por aí com uma bandeira hasteada. Eu não traí a confiança de ninguém, sempre fui o que sou”, argumentou. Ele tomou providências a respeito, procurando a polícia para apurar os crimes de ódio na internet cometidos contra ele no episódio.
Alguns anos atrás, fotos do ator com um suposto namorado já haviam caído na rede. Algum tempo depois, outras imagens, do ator usando apenas sungas e cuecas e até uma em que estava nu também causaram certo rebuliço em torno de seu nome. Mas, tirando esses momentos eventuais, Leonardo Vieira talvez seja um dos artistas de sua geração que mais primam pela discrição. Em suas redes sociais, há o registro de muitos momentos triviais, comuns a qualquer mortal, como o treino na academia ou a brincadeira com o cachorro no parque. Nada que choque, nada que possa sequer ser interpretado como uma autopromoção a partir de sua sexualidade.
Como ele próprio pontua na carta, esse tema sempre esteve restrito aos seus círculos de amigos próximos, aos seus familiares. Ele também aponta para a possibilidade de ser preterido em trabalhos por conta de se declarar gay. Tudo isso suscita reflexões sobre algo mais grave, o que mostra em que pé estamos nesse terreno. A homofobia é quase uma instituição nacional, assim como o racismo, o machismo, o sexismo, a intolerância ao diferente. As redes sociais estão repletas de haters – as pessoas que se comprazem em odiar os outros – prontos a atacar. Leonardo Vieira é a vítima da vez.
Ele conseguiu fazer dessa experiência dolorosa a oportunidade para revelar ao grande público sua orientação sexual, algo que não deveria interessar tanto assim a ninguém ao não ser àqueles diretamente envolvidos. Como pessoa pública, ele é cobrado quanto a isso e talvez precise conviver com esse preço, mas esse fato também não quer dizer que deva ser interrogado, suas escolhas pessoais arbitradas por desconhecidos. Aos 48 anos, ele continua bonitão, mantém a boa forma e sua carta certamente decepcionou algumas pessoas e animou outras. O mais importante, porém, é que a homofobia da qual vem sendo alvo fala muito de nossa sociedade. E fala mal.
Beijar – que é um ato de afeto –, homem ou mulher, não é um crime, mas muitos acreditam que sim. No tribunal público em que a internet se transformou, Leonardo Vieira sentou no banco dos réus sem direito a defesa. Já foi julgado e condenado por, talvez, não atender às expectativas – ou às fantasias – de muitos em relação a ele. Mas que expectativas – ou fantasias – são essas que justificam xingamentos, palavras pesadas, desejos mórbidos? Se pudessem, talvez tentariam “curá-lo” de sua homossexualidade com tratamentos de choque, amarrando-o a uma cadeira e aplicando-lhe castigos e torturas até “aprender a ser homem”. Qualquer semelhança com tempos medievais talvez não seja mera coincidência. Sim, Leonardo Vieira é gay. E daí? Deixem o cara em paz! Aos incomodados com isso, vai aqui um conselho: cuidem de suas vidas!
Carta de Leonardo Vieira
Quero iniciar essa carta primeiramente desejando a todos um feliz 2017! Desejo que o ano novo seja cheio de realizações para todos, mas que seja principalmente um ano de mais tolerância, respeito e amor entre todos os povos, crenças, religiões, cores, classes sociais, ideologias e orientações sexuais.
O ano de 2016 terminou e com ele recebi uma tarefa para enfrentar em 2017, a qual quero dividir com vocês. Encarar essa missão será uma grande mudança em minha vida, talvez a maior e uma efetiva quebra de um paradigma. Ainda não sei que consequências estão por vir, mas quero transformar o episódio e as consequências que vivencio em algo que tenha algum valor para um número maior de pessoas.
No dia 28 de dezembro, comemorei meu aniversário e, para celebrar, fui a uma festa privada de um conhecido. Lá reencontrei um amigo que já não mora mais no Brasil e acabamos nos beijando. Um fotógrafo não perdeu a oportunidade e disparou uma rajada de cliques registrando a situação. O que era para ser um momento meu, acabou se tornando público. No dia seguinte, a foto do beijo entre dois homens estava estampada na capa de um grande site de celebridades e replicada em diversos outros espaços.
Nunca escondi minha sexualidade, quem me conhece sabe disso. Não estou “saindo do armário”, porque nunca estive dentro de um. Também nunca fui um enrustido. Meus pais souberam da minha orientação sexual desde quando eu ainda era muito jovem. No início não foi fácil pra eles, pois somos de famílias católicas e com características bem conservadoras, mas com o tempo eles passaram a me respeitar e aceitar a minha orientação. Eles puderam perceber através da minha conduta que isso era apenas um detalhe da minha personalidade. Eles entenderam que o filho deles podia ser uma boa pessoa, honesto, bom caráter, bom filho, bom amigo, mesmo sendo “gay”. Hoje, a única preocupação da minha mãe é que eu não seja feliz. Eu posso afirmar para ela que sou feliz. Tenho um trabalho que me realiza, amigos que me amam e uma família que me conhece de verdade e que me aceita como eu sou, sem hipocrisias. Meu caso não é nem o primeiro e nem será o último.
Desde cedo já sabia que eu queria ser ator. Já fazia teatro amador na escola, antes mesmo de me descobrir sexualmente. Aos 22 anos, fui alçado para a fama como um foguete. Em quatro capítulos de uma novela fiquei famoso nacionalmente e me tornaram o galã do momento, um “namoradinho do Brasil”. Em pouco tempo estava em todas as capas de revistas e jornais. Passei a receber inúmeras cartas, convites para comerciais de televisão, festas, desfiles, presenças VIPs. A mídia me classificou como símbolo sexual e jornalistas me perguntavam como eu me sentia sendo o novo “símbolo sexual”. Eu era novo e não sabia responder, dizia apenas que estava feliz com a repercussão do meu trabalho. Eu nem me achava tão bonito e sexy assim para ser tido como um símbolo sexual. Sempre me achei um cara normal. Convivi com uma dúvida pessoal que me tirou a paz por um tempo. Como eu poderia ser um símbolo sexual para tantas meninas e mulheres quando a minha sexualidade na “vida real” apontava em outra direção? Como lidar com isso? O que fazer? Declaro minha sexualidade? A pressão era enorme de todos os lados, eu não sabia o que fazer e acabei não me declarando publicamente, mantive uma vida discreta e tratei o assunto em meio a círculos de amizade, trabalho e família como algo natural.
Sempre achei que um ator deve ser como uma tela em branco. Ali colocaremos tintas, cores, formas e sentimentos para dar vida a diferentes personagens. Respeito, mas nunca concordei com atores que expõem sua vida íntima ou levantam bandeiras ideológicas, exatamente porque no meu entender isso poderia macular essa tela em branco e correr o risco de tirar a credibilidade de um trabalho. O público passa a ver o ator antes da personagem e para mim isso nunca foi bom. Um dos motivos de nunca ter feito o meu “outing” foi esse e isso não é uma desculpa. Provavelmente, se eu fosse hétero, manteria a mesma postura discreta em relação a minha vida privada.
Infelizmente, vivemos em um país ainda cheio de preconceitos e a homofobia é um deles. Revelar-se homosexual não é fácil pra ninguém e acredito que seja ainda mais difícil para uma pessoa pública. Sempre achei “assumir” um termo pesado demais. Assume-se um crime, um delito, um erro e uma falta grave. Será que estou errado em ser quem sou? Será que tenho alguma culpa para assumir? Esse termo “assumir” me perseguiu como se eu tivesse cometido algum crime e que eu teria que fazer o “mea culpa” e ser condenado. Nunca me senti criminoso ou culpado por ser homosexual, eu me sentiria assim se tivesse matado alguém, ou roubado alguém ou a nação. O fato de ser gay nunca prejudicou ou feriu alguém, a não ser a mim mesmo; e não escolhi ser gay. Se pudesse escolher, escolheria ser heterossexual com certeza. Seria muito mais fácil a vida, não teria que ter enfrentado as dificuldades que enfrentei com meus pais, não seria discriminado em certos círculos sociais, teria uma família com filhos (sempre sonhei em ser pai), não sofreria preconceito de colegas, não seria atacado nas ruas, não seria xingado nas redes sociais, não deixaria de ser escolhido para certos personagens, seria convidado para mais campanhas publicitárias e capas de revista. Tenho vivido e venho sofrendo preconceito durante toda a minha vida e na maioria das vezes ninguém percebeu, só eu senti na pele, mas nem por isso me vitimizei.
Nunca deixei de fazer nada na minha vida privada por ser ator famoso. Sempre fui a lugares gays, namorei caras incríveis, tenho vários amigos e amigas gays e também frequento lugares héteros, tenho amigos héteros, vou ao supermercado, à feira… Sempre tive uma vida normal como todo ser humano merece ter. Nunca me senti especial por ser ator e sempre fiz questão de transitar livremente, mesmo que muitas vezes tivesse que parar um minuto da minha existência para tirar uma foto ou dar um autógrafo. Agora, pessoas do público as quais dediquei meu tempo, atenção e carinho, me atacam nas redes sociais de maneira vil e violenta, porque “descobriram” que eu sou gay. Eu nunca disse que não era, só não saí por aí com uma bandeira hasteada. Eu não traí a confiança de ninguém, sempre fui o que sou. Algo muito simples de ser entendido se em nossa sociedade essa questão ainda não fosse um tabu no ano de 2017.
Sobre o episódio do “beijo gay”, que a princípio parecia ser um “escândalo do último minuto” ou uma pedra no caminho, eu parei para refletir e vi que era, na verdade, um presente. Uma ótima oportunidade para tirar das minhas costas algo que me fez sofrer por muitos anos. Agradeço sinceramente ao site e ao fotógrafo que publicaram as fotos do beijo, pois assim me vi na obrigação de escrever essa carta e deixar clara a minha posição, tirando, assim, um peso que carrego há anos nas costas, além de poder ajudar a tantas pessoas que sofrem preconceitos, discriminação ou ainda não assumiram sua sexualidade. Estou me sentindo bem mais leve, mas poderia estar me sentindo bem mais pesado, caso eu não tivesse o suporte de minha família e amigos. Embora a publicação tenha me feito um grande favor, pode ter me prejudicado imensamente profissionalmente (só saberemos no futuro) ou poderia ter destruído minha família, se por acaso eles já não soubessem da minha situação. Infelizmente a mesma mídia que se diz contra a intolerância, a discriminação e o preconceito, alimenta esses sentimentos irresponsavelmente, sem medir as consequências. É incrível que obras como o “Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, baseada em um beijo entre homens e transformado em sensacionalismo midiático, ainda sejam atuais.
Essa carta aberta aqui não é um pedido de desculpa, pois não acho que deva pedir desculpas por ser gay. Pelo contrário: sempre tive orgulho de ser quem eu sou. Essa carta é um manifesto contra a homofobia. Descobri estupefato que homofobia não leva ninguém à cadeia. Este crime, que pode ser devastador na vida das pessoas, não tem defesa à altura. Algumas cometem suicídio e outras matam por simples preconceito, que, aliado à violência verbal, psicológica ou física, é uma das mazelas de nossa sociedade.
Não gostaria de me colocar no papel de vítima, mas sou e não posso deixar de querer meus direitos como cidadão de bem e exigir justiça para mim e, quiçá, para tantos outros homosexuais em meu país que também sofrem com isso diariamente e por anos em suas vidas. Homofobia precisa ser tratada com seriedade pela justiça e pela sociedade.
O objetivo dessa carta não é só esclarecer, de uma vez por todas e a quem interessar possa, a minha orientação sexual, mas também alertar para o verdadeiro crime psicológico e letal que as pessoas cometem ao perderem tempo de suas vidas para atacar os outros na internet ou nas ruas.
O que ainda me surpreende é a violência, a guerra, a discriminação, a intolerância, a falta de respeito entre pessoas iguais que se atacam pela diferença, seja pelo fato de alguém ser gay, hétero, preto , branco, rico, pobre, evangélico ou muçulmano. Se sou gay, isso não vai mudar em nada a vida de ninguém ou a de quem estiver lendo isso, mas meu caso talvez possa ajudar pessoas que sofrem com a discriminação sexual ou com qualquer outra forma de discriminação e preconceito. Não consigo entender porque as pessoas ainda se preocupam tanto com a sexualidade alheia e fazem disso motivo de discórdia e violência.
Existem mulheres e homens na internet dizendo coisas horríveis a meu respeito. Tenho sofrido ataques homofóbicos pelo fato de ter sido fotografado beijando um homem. Se eu fosse hétero jamais me envolveria com uma mulher preconceituosa e deselegante, porque também não me envolveria com um homem preconceituoso e deselegante. Ser um ser humano com bom caráter, honesto, amigo, leal, educado, gentil, generoso e outras qualidades é muito mais importante do que quem você beija ou se relaciona sexualmente, independentemente se você é homem ou mulher.
Por isso estou indo esta tarde à comissão dos direitos humanos entender quais são os meus direitos como cidadão e quem sabe assim servir de exemplo para que meu caso não seja mais um e isso possa mudar algo em nossa legislação.
Para terminar esse manifesto gostaria de homenagear e agradecer algumas pessoas que, antes de mim, tiveram a coragem de dar sua cara à tapa e declararam suas orientações sexuais sem medo de enfrentar as consequências: Kevin Spacey, Rick Martin, Ian McKellen, Alessandra Maestrine, Marco Nanini, Ney Matogrosso, Daniela Mercury e tantos outros. Deixo aqui meu muito obrigado e todo meu respeito a todos que lutam por esta causa: a da liberdade para que todos possam ser quem são.
Bom, a vida continua e quem quiser conferir meu trabalho, estou em cartaz no teatro Folha em São Paulo, a partir do dia 11 de janeiro, sempre as quartas e quintas, às 21 horas, na comédia Nove em Ponto, de Rui Vilhena.
Todo apoio aos homossexuais! Chega de homofobia e intolerancia! Cuidem de suas vidas! Parabens Leonardo Vieira!