Lá pelos anos 80, assisti no Rio de Janeiro a uma palestra de Gilberto Freyre em que o sociólogo arrancou aplausos e gargalhadas de um público formado em sua maioria por psicanalistas, ao propor uma psicanálise dos políticos, sacerdotes e educadores brasileiros. É claro que sua recomendação não foi obedecida. Gilberto Freyre pensava que a psicanálise seria necessária para que o País se encontrasse a si próprio. Conhecedor da alma brasileira, Freyre era otimista quanto à possibilidade de a psicanálise explicar, esclarecer, orientar um país em busca de sua identidade, na luta por desprender-se de suas amarras.
Em 2007, já em Goiânia, foi com surpresa que recebi o convite para falar de algo que ainda estou longe de compreender: a alma goiana. A surpresa também foi pelo convite ter sido feito por políticos do PT. Será que a subjetividade vai ser levada em conta? – pensei. Será que o temor ao inconsciente poderia ser superado? Não seria uma imprudência os políticos não considerarem a psicanálise? Havia caído no esquecimento o fato de um psicanalista – Helio Pellegrino –, que se declarava cristão e marxista, ter sido um dos fundadores do PT? Também caíra no esquecimento o fato de Eduardo Mascarenhas ter deixado a psicanálise para se dedicar à política?
Olhando pra trás, me lembro do conto de Machado. Mudamos, eu, a cidade, e o País, passado a limpo pela Lava-Jato. Em 2007, aquela plateia da então Universidade Católica de Goiás acolheu com simpatia algumas de minhas reflexões sobre o que pretendíamos, nós, os cidadãos, para o futuro de Goiânia. Um político chegou mesmo a dizer que minha contribuição era o que se podia esperar de um poeta (!), maneira delicada de dizer que ela era inofensiva, o que se podia esperar de um político.
Do alto da minha insignificância, ofereci meu jeito de olhar, e comecei dizendo o seguinte. Cá no meu canto, reflito sobre alguns limites, meus e da própria psicanálise. É certo que a psicanálise limita sua eficácia ao exercício da clínica, em que se valoriza a singularidade, o um por um. Talvez isso seja pouco para quem pensa na importância da massa. Mas será que podemos esquecer a lição de Freud sobre os mecanismos do poder através das identificações em Psicanálise das Massas e Análise do Eu, sobre o eterno conflito entre as pulsões sexuais e as exigências socioculturais em O Mal-estar da Civilização, sobre a denúncia dos excessos da alienação religiosa em O Futuro de uma Ilusão, sobre a fecundidade de um mito moderno como imaginado em Totem e Tabu, quando se trata de salvar o pai, agora que a própria ciência torna o pai irrisório, pá de cal na crise aberta pelo declínio do patriarcalismo?
Hoje, 2017, não creio mais no tal declínio, quando observo que a revolução digital e a biopolítica desenham um cenário de dominação muito mais poderosa e devastadora. Mas, em 2007, me perguntavam o que era existir em Goiânia, e eu, incauto, ainda cultivava a ousadia de responder. Limito-me a umas poucas observações, em tom de depoimento de quem vem de fora, do Rio de Janeiro, dizia. Forasteiro, será que posso ajudar? Não me esqueço de Cajuína, a canção de Caetano, o “existirmos, a que será que se destina?”.
Um pouco de história: me preparava para deixar minha casa no Rio, e deixar também a redação do Jornal do Brasil, onde trabalhava na editoria nacional, quando aconteceu o acidente com o césio, em 1987. O alarme era geral, o tom da cobertura, sensacionalista. Água contaminada, ar contaminado, alimentos recusados por brasilienses se procediam de Goiânia, como era o caso do arroz, até mesmo se recusou a sepultura – um dos primeiros monumentos humanos – aos atingidos pela radiação, por temor da contaminação da terra. Aos olhos do País que a tudo assistia na televisão, era como se os goianos fossem tomados pela peste. Os colegas de redação diziam que eu estava louco de sair do Rio e decidir morar em Goiânia – será que não tinha medo de pegar câncer, ou de ficar estéril? Foi preciso que o governador Henrique Santillo fosse pessoalmente às redações dos jornais mais influentes do País para que o terror diminuísse. Enquanto isso, a atriz Betty Faria virava fada-madrinha por defender Goiânia contra os ataques de Hebe Camargo, a então madrasta espalhando o pânico pela TV.
Convidado por amigos, aqui cheguei em 1988, precedido por mulher e filhos. O plano era engajar-me no esforço de criar com os goianos uma programação de TV regional, que não se limitasse à estação repetidora. Tarefa de jornalistas. Na clínica, o esforço de questionar os goianos quanto à sua autoestima, seriamente abalada. A esperança, infundada, era de que pelo menos Goiânia, uma cidade-bebê, não repetisse os erros de velhas cidades, quatrocentonas. Foi um impacto morar numa cidade que tinha apenas dez anos de vida a mais do que eu, parecia que quase tudo estava por se fazer.
“A esperança, infundada, era de que pelo menos Goiânia, uma cidade-bebê, não repetisse os erros de velhas cidades, quatrocentonas”
O que via: os goianos tinham um pé na fazenda, outro no computador. Um gosto, uma aptidão pelas máquinas. Uma abertura para a modernidade, no que ela tem de maquínica. Me parecia um meio eficaz para superação do atraso cultural motivado pelo isolamento histórico e geográfico imposto pelo eixo Rio-São Paulo e Minas. A imagem pregnante, desde os bancos escolares, desde o traçado dos mapas, era a imensidão do Centro-Oeste, onde não havia nada, só mato, e bichos, e índios, nos diziam. Raspava-se o lápis de cor e com algodão se espalhava o verde para Mato Grosso e Goiás.
Hoje, o verde tem diversa conotação, quando ainda existe. Pois foi justamente aqui em Goiás que pude ver os índios, bem de perto, mostrados na sua diferença, a nossa diferença. Nossa utopia realizada? Temos inveja do seu gozo, e por isso consentimos com o etnocídio? E tome gravata, dizia o poeta Vinicius de Moraes.
Os antropólogos afirmam que a grande contribuição do índio brasileiro para a cultura universal é sua relação com o corpo. O sociólogo Gilberto Freyre o confirma: “No século XVI, os portugueses tomavam dois a três banhos por ano. Achavam que o banho era um perigo. Os nossos índios tomavam três a quatro banhos por dia, e os portugueses adotaram a lição índia. Pergunto se não andou por aí alguma psicanálise. Nossa seminudez tropical foi uma tendência que venceu. Na recusa das vestes europeias, houve uma harmonização do homem com seu meio. Reagimos ao excesso de civilização e de moralidade vindos da Europa, da Igreja Católica mais ortodoxa. Foi uma vitória da autocolonização que salvou o Brasil da vida anti-higiênica. Acabou que até o europeu defendeu o direito de ser ele próprio tropical, aclimatado” (Caderno B, Jornal do Brasil, 9-10-1985).
Observo que houve uma regressão no modo de os políticos goianos se vestirem: em 1988, um dado muito simpático era ver os políticos – governadores, prefeitos, deputados – andarem à vontade em mangas de camisa. Hoje, impõem-se o terno e gravata, dizem que por exigência de Brasília. No divã, tira-se a gravata: suspende-se o sufoco, ainda que provisoriamente. O resultado palpável é que se pensa e se fala melhor. Imagino o bem-estar de uma sociedade em que seus políticos pensassem melhor, por influência do seu modo de vestir, como Gandhi o comprovou, na luta pela libertação da Índia contra o domínio britânico. Roupa é também linguagem, nos diz a psicanálise, ao destacar o papel decisivo do símbolo na construção do sujeito.
Observo também que os homens goianos, de modo geral, são menos livres do que as mulheres na relação com o corpo e com as roupas. As mulheres, notáveis por sua beleza física, se vestiam um tanto estereotipadamente nos anos 80: pelas ruas, só se viam babados, o que me fazia pensar no verso de Caetano em Sampa: “a deselegância discreta de suas meninas”, e também no samba de Noel Rosa: “de babado, sim, meu amor ideal, sem babado, não”. Hoje, Goiânia é um centro receptor de moda de todas as tendências, atual, aberta, diversificada. Pegou geral o despojamento do jeans, camiseta e sandálias havaianas, ainda que vez por outra alguém vá de longo ao supermercado logo ali. O despojamento se estendeu também à paisagem arquitetônica da cidade, que, livre dos cartazes da poluição visual, pode ostentar a beleza do art-déco. Para isso foi importante o olhar dos cineastas e artistas plásticos.
“Os homens goianos, de modo geral, são menos livres do que as mulheres na relação com o corpo e com as roupas”
Ouvi com frequência o comentário de que Goiânia seria no País a cidade que mais tem motéis, o que pode revelar um índice da liberdade sexual das mulheres, mas essa liberdade não se estende ao corpo dos velhos. Se compararmos a liberdade dos velhos e velhas andando nos calçadões ou nas areias das praias da Zona Sul carioca, sobretudo na praia do Leme, chegaremos à conclusão de que predomina no ideário dos goianienses o preconceito de que velho não tem sexo. É também sabido que dos anos 80 para cá aumentou a violência na cidade. Predomina a chamada arquitetura do perigo, com muros altos, cercas eletrificadas, sistemas de vídeo para vigilância em casas e edifícios.
Em alguns casos, chega-se ao extremo da instalação de câmeras nas salas de aula e nos quartos de adolescentes, por temor de pais e professores, aturdidos com a questão das drogas. A tendência para condomínios fechados e muros altos fortalece um dos traços dos goianos, o seu gosto pelo isolamento, à custa de um elevado preço em termos psíquicos: muro é a vitória da paranoia, o que pode ser comprovado pelas não metafóricas cortinas de ferro na extinta União Soviética, em Berlim, em Israel, e na fronteira dos Estados Unidos e do México.
Em contraste, a praça é a arte do encontro, ideal arquitetônico sabiamente indicado no mapa original da cidade, mas destruído por invasões e por falta de políticas públicas, o que deixa espaço para a bandidagem. No Rio de Janeiro, nos anos 80, podíamos constatar que os espaços urbanos onde não houvesse iluminação e onde se acumulava o lixo eram infalivelmente ocupados por bandidos. O Rio se tornou uma cidade suja, poluída e fedorenta, e foi preciso que um vice-governador, Darcy Ribeiro, comprasse uma briga com os donos de botequins no Centro e na Zona Sul, na maioria de portugueses, para que lavassem os banheiros e calçadas entregues a uma imundície indescritível. Goiânia, de modo geral, é uma cidade limpa, florida, arborizada, e até pouco tempo se comentava pelos jornais a elegância dos seus garis, sobretudo as varredoras de rua, com suas toucas de pano a envolver graciosamente os cabelos.
Existir em Goiânia é ter a possibilidade de andar em calçadas largas, amplas, generosas, como as da Rua 4, no Centro, longe dos atropelos de carros estacionados, o que, certa vez, em Ipanema, no Rio, graças ao abuso dos motoristas, provocou uma passeata de mães pelas ruas do bairro, com seus carrinhos de bebês, denunciando a impossibilidade de caminharem sob o sol. Calçadas amplas medem o índice de urbanidade, de civilidade, e também, pela ausência, o grau de especulação imobiliária. Calçada estreita, que angustia o passante, é um absurdo em Goiânia, pelo desmentido do maior dom não só da cidade, como de todo o Estado, a generosidade do espaço. Amplitude que dispensa a centralização de serviços num só local, como um único centro, se acreditarmos nos terminais de computadores: não é obrigatório congestionar o Centro.
Existir em Goiânia é, se pudéssemos, andar, flanar, bem no sentido da modernidade inaugurada por Baudelaire: a abertura para os encontros impossíveis, ou apenas fugazes, quando aprendemos que conhecer uma cidade é poder andar nela a pé. Mas não há segurança, o trânsito é violento, a cidade passou a ser pensada não para o pedestre, mas para o automóvel. Carro é fetiche, para alguns vale mais do que uma mulher, é um dos símbolos do desperdício por passar a maior parte do dia parado. O trânsito na cidade é um dos piores do País. Nele, assistimos a uma metamorfose: um cidadão pacato de repente vira fera, se arranham seu carro, e é capaz de entrar numa discussão mortífera, deixando as esquinas como palcos de uma batalha, com seus cacos de vidro, hospitais lotados, choro e ranger de dentes. Não haveria melhor uso erótico da cólera? A que atavismos, a que empuxos ancestrais cedemos quando caímos nas armadilhas do trânsito?
“Existir em Goiânia é, se pudéssemos, andar, flanar, bem no sentido da modernidade inaugurada por Baudelaire: a abertura para os encontros impossíveis, ou apenas fugazes”
Gilberto Freyre também se preocupou com isso, e defendeu a tese de que tudo teria começado com o fim da escravidão, quando os negros passaram à condição de motoristas empoleirados nas mais altas boleias de antigos veículos, de onde, do alto de sua mais recente importância, passavam a descarregar antigos e justificados ressentimentos. Será?
De minha parte, lembro que na tragédia narrada por Sófocles, Laio, o pai de Édipo, fugia do rei Pélopes porque não respeitou o pacto que regulava a antiga pederastia grega. Ele havia transado com Crisipo, filho do rei, sem a permissão do pai. Ao chegar a um cruzamento, entrou em luta de prestígio com outro condutor de veículo, um chamado Édipo, que também disputava a via preferencial. Édipo se atraca com Laio e o mata, sem saber que ele era seu pai. Laio, ao fugir do pai de um menino, é morto por seu próprio menino. Como se vê, as histórias de morte no trânsito são antigas. Serão intermináveis? Continuaremos a depositar no carro o valor que decide da nossa dignidade fálica? Assistiremos indiferentes às cenas de morte de motociclistas, pressionados por seus empregadores a fazerem seu trabalho num tempo cada vez mais curto? Os canos de descarga continuarão abertos, tirando nosso sono na madrugada, e nos dando de presente durante o dia uma surdez garantida? Mas isso não é inevitável: nos Estados Unidos, conseguiu-se reduzir a poluição sonora de carros e motos “pilotados” (chamam os caras de pilotos, querer mais o quê?) por entregadores, ao fazer incidir a multa não sobre os condutores de veículos, mas sobre os empresários.
E o trem? Ficou reduzido a simples expressão dos afásicos? Por que não o metrô? Por que não a bicicleta, não apenas como meio de competição, mas também para transporte e lazer? Houve, porém, algum avanço: já não se discute se as flores são ou não necessárias (!), mais ainda se varrem calçadas com jatos d’água. Questão de tempo para que o discurso ecológico seja inteiramente recuperado pelo capitalismo.
Existir em Goiânia é ter tido a oportunidade de ver como em pouco tempo houve uma proliferação de escolas de línguas e de livrarias, desmentindo a tese de um famoso jornalista que dizia que goiano só lê escritura de terra. Em 1988, não se achava um livro de psicanálise, era só autoajuda. É também notável a maneira com que os goianos se apropriam da língua, o à vontade que revela excesso de intimidade e um uso meio bárbaro do escrever e do falar, sobretudo no que se refere às excentricidades dos nomes próprios.
A língua do povo, no dia a dia, não deixa de lado os eufemismos ao lidar com a questão racial. Assim, um negro é chamado de “moreninho”, e não há como convencer um goiano de que isso é uma forma velada de racismo, que sempre começa na linguagem, e eventualmente se estende aos símbolos religiosos de origem afro, os da umbanda ou do candomblé, como se constatou há alguns anos durante exposição no Vaca Brava, quando fundamentalistas evangélicos se sentiram ofendidos pela simples exposição de estátuas de Iemanjá. Também não há como convencer um goiano do povo de que usar camisa cor de rosa ou vermelha, ou dobrar a manga curta de uma camisa esporte, não é sinal obrigatório de homossexualidade.
Existir em Goiânia é também constatar que alguma coisa parou nos anos 50. Dizem os observadores da cena política que o País parou nos anos 50, e que estamos até hoje tentando sair das contradições que explodiram com a era Vargas. Alguma coisa parou nesse tempo também nas estações de rádio. O som de uma famosa FM revela um baú inacreditável. De minha parte, gosto muito, só em Goiânia consegui ouvir de novo – e muito – algumas canções que remontam à minha infância sem perderem a qualidade. Para além da parada de sucessos, observo a formação de músicos que me parece muito afiada. Goiânia pode dar um salto de qualidade na chamada música instrumental.
Qual a Goiânia que queremos? Mais educação, mais saúde, mais qualidade de vida, mais segurança, prosperidade, desenvolvimento sustentável: tudo isso pode ser mais do que palavras vazias? Lembro-me, mais uma vez, de Gilberto Freyre na matéria citada. Há uma grande lição que a civilização brasileira pode dar ao mundo: “Vou responder com palavras não minhas, mas do historiador Toynbee. É a mistura de raças e culturas.” No coração do Brasil, Goiânia pode fazer a sua parte, expressando a vocação brasileira que elegeu como resposta civilizatória a convivência dos diferentes. Mantendo-se como lugar que abriga exilados, forasteiros, e se abre para o novo, sem descuidar de suas tradições vivas, talvez não perca seu rosto humano.
Goiânia tem muitas livrarias ? As calçadas são amplas, regulares e sem carros estacionados ? Foi isso que li ??
Muito obrigado, Elcione, pela atenção, pela leitura do texto. Goiânia não tem muitas livrarias, não tanto quanto queríamos, mas elas hoje são mais numerosas e influentes do que o eram em 1988, quando aqui cheguei. Por exemplo, a oferta de livros sobre psicanálise era muito escassa. Hoje, temos até livraria especializada no assunto. Ainda é pouco, concordo, se compararmos com os grandes centros do Rio e São Paulo. Me parece que pelo menos no centro de Goiânia as calçadas, mais antigas, são amplas, e não têm tantos carros estacionados, como, por exemplo, no Rio de uma certa época. É claro que queremos mais livrarias, mais calçadas amplas, sem irregularidades que infernizam a vida dos pedestres e dos idosos. Queremos uma cidade melhor, o que não quer dizer que ela não tenha muitos defeitos. O objetivo do meu texto continua sendo um convite para pensarmos a cidade e ver o quanto ela mudou, para melhor e para pior, desde 2007, quando fui convidado a fazer a palestra de que derivou o texto. Me alegro com o fato de você também pensar criticamente os problemas da cidade. É por aí que podemos melhorá-la. Mais uma vez, obrigado por sua atenção.
Bom texto para ajudar a pensar sobre o ringue permanente que todas as cidades brasileiras – as grandes, as médias e até as pequenas – estão se tornando. Obrigada.