De início, elas se estranharam. Ainda tentando se integrar à nova vida nos Estados Unidos, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt não gostou nada de ouvir uma observação infeliz da escritora norte-americana Mary McCarthy, em um evento social em Nova York em 1945. Em meio a uma conversa com outros intelectuais a respeito da hostilidade dos franceses aos alemães durante a ocupação de Paris na Segunda Guerra, McCarthy dissera, em tom de ironia, que lamentava por Hitler, pelo fato de ele ser tão absurdo “a ponto de querer o amor de suas vítimas”. “Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas na minha frente – eu, vítima de Hitler, uma pessoa que esteve num campo de concentração!”, respondeu Arendt de forma furiosa, deixando McCarthy sem reação.
O constrangimento mútuo resultante dessa situação embaraçosa impediu uma aproximação entre as duas pelos próximos três anos, mas foi a própria Arendt que resolveu quebrar o gelo, depois de uma reunião da revista politcs, na qual ela e McCarthy eram colaboradoras. “Vamos pôr fim a esse absurdo. Pensamos de modo tão parecido”, propôs. Mary desculpou-se pela afirmação desastrada sobre Hitler, e Hannah, por sua vez, admitiu que nunca havia sido prisioneira em um campo de concentração, mas apenas fora levada para um campo de internamento na França, pelo governo colaboracionista de Vichy, antes de escapar para os EUA. Era o início de uma profunda amizade, uma relação afetiva e intelectual que se estenderia por quase três décadas, até a morte de Arendt, em 1975.
As afinidades entre elas eram, de fato, muitas, a começar da trajetória de cada uma. Nascida em Hannover, na Alemanha, em 1906, Hannah Arendt provinha de uma família rica e intelectualizada, mas muito cedo passou por uma experiência trágica: seu pai, o engenheiro Paul Arendt, morreu em consequência das sequelas provocadas pela sífilis, quando ela tinha apenas 6 anos de idade. Mary McCarthy nasceu em Seattle, em 1912, e também aos 6 anos teve de enfrentar a dura condição da orfandade, no seu caso dupla. Seus pais estavam entre as milhares de vítimas da Gripe Espanhola em 1918.
Arendt foi uma brilhante aluna de filosofia e estudou com Heidegger e Jaspers na década de 1920 na Alemanha. Já McCarthy graduou-se pela prestigiada e elitista Vassar, cenário de um dos seus romances mais famosos, O Grupo. Ambas também construíram uma sólida carreira intelectual: Arendt como uma das mais influentes e originais pensadoras do século 20 e McCarthy como uma talentosa romancista e ensaísta. As duas participaram ativamente ainda do debate político de sua época e se envolveram em polêmicas, a exemplo do que ocorreu com Arendt e a estrondosa controvérsia em torno do seu livro Eichmann em Jerusalém e dos ensaios escritos por McCarthy sobre a Guerra do Vietnã e o escândalo do Watergate.
É verdade que o convívio entre duas mulheres tão brilhantes e de temperamento tão parecido – tanto Mary quanto Hannah eram independentes, voluntariosas e um tanto quanto teimosas – poderia originar muito mais uma guerra de vaidades do que um relacionamento fraterno. Editor das obras de Arendt e McCarthy, William Jovanovich afirmou certa vez que “a maravilha foi essas duas mulheres terem continuado amigas”. Mas como se pode depreender da leitura da longa correspondência entre elas editada no livro Entre Amigas, organizado por Carol Brightman, o sentimento que as unia era de uma imensa ternura, somada ao prazer intelectual proporcionado por um diálogo contínuo em que ambas se compraziam no que Arendt chamava o seu passatempo favorito: o “negócio de pensar”.
De fato, a intensa troca de cartas entre as duas autoras por quase 30 anos e que atravessou as fronteiras de vários países (Arendt, apesar de estabelecida em Nova York, era uma viajante regular e McCarthy morou em diversos locais na Europa) são “exercícios de pensamento crítico”, como bem denominou Carol Brightman na introdução do volume. Para usar uma expressão corrente de Arendt, o que elas faziam nesse intercâmbio de ideias era “pensar sem corrimão”, ou seja, refletir sobre as questões de seu tempo sem precisar se escorar nas ideologias e nas opiniões preconcebidas dos círculos intelectuais que frequentavam.
Em Mary McCarthy, Hannah Arendt encontrou uma interlocutora à altura para discutir sobre vários temas que aparecem na sua obra. Por exemplo, sobre uma questão que é recorrente em seus textos, a ideia de que a atividade de pensar é uma busca de sentido, e não da verdade. “A principal falácia é acreditar que a Verdade é um resultado que vem no final de um processo de pensamento. Ao contrário, a Verdade é sempre o início do pensamento: pensar é sempre sem resultado. Esta é a diferença entre ‘filosofia’ e ciência: a ciência tem resultados; a filosofia, nunca. O pensar começa depois de sentir o efeito fulminante, por assim dizer, de uma experiência de verdade”, escreve ela a Mary.
Em resposta, Mary questiona a amiga sobre a solução que, segundo Hannah, Sócrates teria dado ao dilema de Raskolnikov, o protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, entre cometer ou não um assassinato: a razão para não matar estaria no fato de que ninguém quer passar o resto da vida ao lado de um assassino e isso ocorre, indubitavelmente, com quem pratica um crime dessa natureza, já que é impossível escapar de si mesmo. McCarthy contra-argumenta, evocando o cinismo reinante no mundo contemporâneo: “A pessoa moderna […] diria a Sócrates, dando de ombros: ‘Por que não? Qual é o problema de ser um assassino?’ E Sócrates voltaria a seu ponto de partida”.
Em outra carta, Arendt discorre sobre o sentido do gosto, um tema que a interessaria cada vez mais e que se tornaria muito presente nos seus últimos escritos, em que ela passaria a explorar a faculdade humana do juízo, na sua dimensão não apenas estética, mas sobretudo política. Muito além de ser algo meramente subjetivo, para Arendt, o gosto é capaz de revelar “quem” somos. “[…] o gosto decide não apenas a questão de que coisas gostamos ou de qual deve ser o aspecto e o som do mundo, mas também quem no mundo pertence a que grupo. […] Nós nos reconhecemos um ao outro pelo que agrada e desagrada”, define.
Já numa das missivas endereçadas a Arendt, Mary McCarthy, por sua vez, caracteriza o homem médio contemporâneo como uma “caricatura do filósofo”. Sempre desconfiado e julgando-se muito astuto, este indivíduo, como um bom cartesiano, duvida de tudo e “anseia por informação como quem anseia por açúcar”. Mas é incapaz de compreender o que se passa a sua volta, como uma criança que implora por “respostas que não espera entender”, descreve McCarthy, com sua habitual ironia. Um perfil que, diga-se de passagem, corresponde ao do burguês filisteu delineado por Arendt em Origens do Totalitarismo, cuja perversão degeneraria num tipo como o criminoso nazista Eichmann, retratado pela filósofa em Eichmann em Jerusalém: uma pessoa incapaz de se lançar à experiência do diálogo do pensamento, na qual o eu se desdobra em uma conversa consigo mesmo.
Cumplicidade e intimidade
Mas diferente do que se vê na correspondência conhecida entre outros intelectuais, as cartas entre Mary e Hannah não se limitam a um intercâmbio de ideias elevadas. Elas revelam ainda uma estreita cumplicidade, que se manifesta, por exemplo, no cuidado com que liam os textos, publicados ou ainda por publicar, uma da outra – Mary se esmerando em corrigir o inglês não raro claudicante de Hannah e esta, por sua vez, sempre atenta a alguma incoerência conceitual da amiga.
Também são diversas as manifestações de lealdade e apoio mútuos, em especial nos momentos mais difíceis da carreira de ambas. “[…] a vejo nos EUA, onde podemos desfrutar juntas da culpa de sermos cúmplices”, escreve Mary carinhosamente a Arendt, depois de ter publicado artigos na imprensa em defesa de Eichmann em Jerusalém. O livro de Arendt, em que aparece pela primeira vez a sua famosa expressão “banalidade do mal”, para se referir aos crimes nazistas, e no qual ela discorre cruamente sobre a controversa participação dos Conselhos Judeus no envio de prisioneiros para os campos de concentração na Segunda Guerra, foi o epicentro de uma polêmica que duraria anos.
Em contrapartida, Arendt não economiza observações elogiosas aos textos de McCarthy. “Gostei muito, muitíssimo do Grupo. É bem diferente de seus outros livros, mais meigo e mais triste ao mesmo tempo”, diz ela a respeito de um dos mais famosos romances de Mary McCarthy, mas que foi bombardeado à época do seu lançamento por críticos como Norman Mailer.
Em uma das cartas na qual tece comentários calorosos a Homens em Tempos Sombrios, livro no qual Hannah Arendt reúne pequenos ensaios sobre personalidades como Rosa Luxemburgo e Brecht, Mary McCarthy define a amizade como fazer um “pedaço do caminho juntos”. Arendt responde com entusiasmo: “Obrigada!”, mas antes tem o cuidado de distinguir a amizade da intimidade. Para ela, a amizade sem dúvida significava esse convívio fraterno, essa alegria recíproca de pessoas que sentem satisfação na presença um dos outros, como Aristóteles conceitua na sua Ética a Nicômaco. No entanto, sempre reservada, a filósofa preferia preservar a esfera mais recôndita da intimidade – e essa postura mostra-se patente nos seus diálogos com Mary.
Por essa razão, na profusão de cartas entre as duas, explicam-se as escassas referências de Arendt a Heidegger (os dois foram amantes quando ele foi professor dela na década de 1920) e os poucos detalhes da sua vida conjugal ao lado do seu segundo marido, Heinrich Blücher. Arendt só abre mais o coração após a morte de Blücher, em 1970. “Acho que nunca lhe disse que, durante dez longos anos, senti um medo constante de que acontecesse essa morte súbita. Este medo frequentemente chegou quase a um verdadeiro pânico”, desabafa ela a Mary, a respeito do estado de tensão que suportou solitariamente em relação à condição de saúde cada vez mais deteriorada do marido.
McCarthy, por seu turno, mostrava-se infinitamente mais expansiva sobre seus amores e relacionamentos. Casada quatro vezes (a primeira com o crítico Edmund Wilson e a quarta e última com o diplomata James West), ela teve em Arendt uma confidente a respeito dos seus romances da vida real. Uma confidente, diga-se de passagem, nada entusiasta no que diz respeito a arroubos românticos. “Mas, por favor, não se iluda: ninguém nunca foi curado de nada, traço de personalidade ou hábito, por uma mera mulher, embora isto seja precisamente o que todas as moças acham que podem fazer”, alerta a cética e racional filósofa a Mary, que havia confessado à amiga, em uma missiva anterior, estar apaixonada por West a ponto de “ficar tonta” e esperava transformá-lo com seu amor. A resposta de Mary é deliciosamente irreverente: “Para que se apaixonar se é para os dois permanecerem inertemente como eram?”
Preocupada com o risco de fazer viagens a zonas de guerra, como quando foi ao Vietnã, a fim de escrever reportagens especiais e ensaios para a imprensa norte-americana, Mary McCarthy chegou a fazer um testamento no qual, entre outras disposições, deixava “duas pequenas joias” a Arendt. Mas foi Hannah quem morreu primeiro, de um enfarte fulminante, em seu apartamento em Nova York, em 1975. No funeral da amiga, Mary McCarthy fez um discurso emocionado, apresentando um retrato de Arendt muito diferente das sisudas imagens mais conhecidas da filósofa.
Segundo Mary, Arendt era uma mulher fascinante, sedutora e feminina, cujos olhos tinham um encanto especial (na correspondência trocada com Hannah, Martin Heidegger também sempre faz referência a esse olhar que o fascinava tanto). “Seus olhos [eram] tão brilhantes e chamejantes, fixos quando estava feliz ou empolgada, mas também profundos, escuros, distantes, poços de interioridade”, evoca McCarthy. Se a amizade é um caminho que se percorre com os amigos, como definira a autora de O Grupo, pode-se dizer que a relação entre Mary McCarthy e Hannah Arendt foi um percurso radiante e iluminado, assim como os belos textos que elas nos legaram.
A sensibilidade e precisão de Rosângela em sua seleção das cartas para a construção de seus comentários é arrebatadora: tenho de ler Entre amigas.
Obrigada pelo comentário, Zeca. Vale muito a leitura das cartas entre elas, sim!