A biografia de Tzvetan Todorov será publicada repetidamente daqui por diante, por ocasião de seu falecimento (1939-2017). Mas não seria demais lembrar que, para além da história de autoexílio de quem nasceu na Bulgária e refugiou-se na França para escapar do regime comunista, de sua carreira de sucesso de professor e pesquisador, Todorov possui uma “bio-blio-grafia” que reúne em si as reviravoltas e os conflitos teóricos vividos pela “República das Letras” no século XX. Haverá poucos livros que fazem a linha “balanço geral” dos Estudos Literários, como tentou o recém-publicado Mutações da Literatura no Século XXI (Leila Perrone-Moisés, Cia das Letras, 2015), tão ilustrativos e honestos com suas contradições como a história de publicação de Todorov.
Efetivamente, é possível identificar um ponto de inflexão na produção do autor: de 1965, ano da primeira publicação de Todorov em francês, até 1979, seus livros apresentam reflexões e análises de caráter imanentista. No século XX, em especial na Europa, a análise estrutural de uma obra foi orientada, em grande medida, pelas lições formalistas de quem ele foi o primeiro tradutor para uma língua ocidental (Théorie de la Littérature, Textes des Formalistes Russes, 1965).
A partir dessa tradução, os estudos literários europeus e americanos passam a conhecer textos que hoje são também familiares para os alunos de Estudos Literários brasileiros como A Teoria do Método Formal (1925) de Eikhenbaum, A Arte como Procedimento (1917) de Chkloviski, A Noção de Construção (1923) de Tynianov, As Transformações dos Contos Fantásticos (1928) de Propp, entre outros textos fundamentais para o que denominamos de leitura sistemática de uma obra de arte literária. Títulos como A Gramática de Decamerão (1969) não são apenas exemplares desse método de leitura, mas tornaram-se obrigatórios nos cursos de Letras brasileiros, em especial nas universidades do Rio de Janeiro (cf. o artigo Dois Tempos para a Literatura Brasileira: Antonio Candido, Silviano Santiago e o Modernismo).
O historiador e crítico das ideias literárias Jean-Yves Tadié, na página e meia de seu livro sobre A Crítica Literária no Século XX que dedica a Todorov, descreve sua produção intelectual como a tarefa de “tomar a linguística estrutural, ver a gramática como modelo, para elaborar uma poética da narrativa” (1992, p. 251). Vale explicitar que a proposição de uma gramática geral do literário – tal era o intento da teoria formal/estrutural – parte do princípio de uma universalidade da linguagem poética. Encontrando-se a regra geral (a gramática) da narrativa ou do poema, acreditava-se, encontrar-se-ia a essência de um e outro gênero literário. O universal do poético estaria na forma e não no conteúdo, que de resto era totalmente desprezado, como podemos ler nas palavras do próprio Todorov no verbete sobre “O discurso da ficção” elaborado para seu Dicionário das Ciências da Linguagem: “Os elementos que compõem uma obra obedecem a uma lógica interna, e não externa” (1972, p. 314). Aí está a síntese do caráter autotélico dos estudos teóricos de boa parte da produção de conhecimento sobre o literário empreendida por Todorov até o final da década de 70.
Seguindo a lógica dos títulos, percebe-se que alguma coisa aconteceu entre 1979, quando ocorre a publicação de seu Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem em parceria com Oswald Ducrot, e 1982, ano em que publica A Conquista da América: a Questão do Outro. De uma forma que surpreende, questões relativas ao mundo e à verdade passam a interessar ao crítico: “Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. […] Escolhi contar uma história. Mais próxima do mito do que da argumentação, mas distinta […]: em primeiro lugar, é uma história verdadeira” (A Conquista da América, 2014, p. 3)
Da imanência da linguagem à pesquisa do extrínseco. Sem fazer uma lista completa, pode-se dizer que, depois de A Conquista da América, seus livros[1] mantêm esses mesmos princípios: tratar da verdade (problema que sempre foi rejeitado pelo formalismo/estruturalismo/imanentismo); compreender a si mesmo em uma relação intersubjetiva, aceitando a instabilidade que o outro traz para o eu; estudar o passado para iluminar o presente (o presente para Todorov é, como podemos aferir de sua autobiografia intelectual, o presente dos conflitos étnicos, da intolerância religiosa e da morte da literatura).
Na breve apresentação que faz da figura de Todorov no contexto da Crítica Literária no Século XX, Tadié chega também a observar uma mudança na sua postura teórica sem avançar qualquer hipótese para tal mudança. Tadié se contentará com a simples observação de que Todorov teria tomado consciência das dificuldades de um trabalho normativo e categorial: “É sem dúvida pela consciência dessa dificuldade que, em trabalho recente ? Crítica da Crítica (1984) ? , Todorov parece romper com o formalismo e descobrir que a literatura é, ao mesmo tempo, construção e busca pela verdade” (1992, p. 253).
Observa-se, contudo, que entre o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage (1979) e La Conquête de l’Amérique: la Question de l’Autre (1982) há o livro Mikhaïl Bakhtine, le Principe Dialogique (1981). Aparentemente, trata-se de mais um formalista russo na enciclopédia todoroviana. Mas o leitor atento de Bakhtin não deixará escapar que se trata de um formalista entre aspas, posto que desde 1924, data de desenvolvimento de seus estudos sobre criação literária[2], Bakhtin vinha criticando o que denominava como “jovem poética russa” justamente pelo abandono das questões relativas à vida (denominada “unidade de cultura”).
Em seu Mikhaïl Bakhtine, le Principe Dialogique, Todorov deixa claro que reconhece essa “unidade de cultura” bakhtiniana na atividade discursiva, lugar de encontro entre duas vozes ? este seria o “princípio dialógico” que dá título ao livro. Todorov aprecia em Bakhtin a capacidade de refundar a estética sobre o social, sobre o encontro com o outro e não sobre o indivíduo. A história intelectual de Todorov desenha a figura de um sujeito que compreendeu, a meio caminho da selva escura da vida, que as respostas do Imanentismo estrutural e do Culturalismo não apenas não eram suficientes para o resgate de um modelo de sujeito, como a própria ideia de resgate e de modelo também se mostravam insustentáveis.
No livro traduzido para português como O Homem Desenraizado (Todorov, 1999), o professor Marcio Seligmann-Silva lê não apenas uma autobiografia no sentido clássico do termo, mas principalmente a tentativa de Todorov de “articular a sua vida à crônica do século XX” (in: O Local da Diferença, 2005, p. 145). As linhas mestras dessa crônica, segundo Todorov, são:
1) os regimes totalitários ? sua experiência comunista na Bulgária o obrigou a optar por um estudo autotélico da literatura, ou seja, um estudo que não apresenta qualquer finalidade ou objetivo fora ou para além da obra considerada em si mesma (isso também se confirma no livro A Literatura em Perigo);
2) os choques culturais entre o Ocidente e o Islã produzidos pelos movimentos migratórios pós-Segunda Guerra Mundial (no livro O Medo dos Bárbaros, 2010), Todorov aprofunda essa discussão ao analisar o “novo racismo” francês e suas relações com a crítica literária denominada multiculturalista);
3) as consequências desses dois grandes fenômenos políticos e culturais para a prática dos estudos literários e, de modo dialético, a influência dos estudos de literatura nas políticas públicas definidas para a democracia no Ocidente.
Segundo Seligman-Silva: “Todorov não trata tanto do homem desenraizado ? aculturado, o que remete a uma visão conservadora e naturalizante da cultura ? mas sobretudo do homem dépaysé, como se lê no original, ou seja, sem rumo, à deriva diante de um modelo de homem que parece ter naufragado” (2005, p. 147).
O próprio Todorov recusa a tradução do título de sua autobiografia para o português quando, em O Medo dos Bárbaros, afirma que “tal assimilação dos homens a plantas é ilegítima porque o homem nunca é produto de uma só cultura; além disso, o mundo animal distingue-se no do mundo vegetal precisamente por sua mobilidade. As culturas não têm essência, nem alma, apesar das páginas admiráveis escritas sobre esse tema” (2010, p. 72)
A metáfora do “despaisamento” proposta por Todorov faz pensar na necessidade de reinventar uma outra concepção de ser humano, que leve em consideração o trânsito, a troca, a relação, o diálogo, a vida em comum. Se inscrevermos essa necessidade no contexto daquilo que ficou conhecido no final do século XX como “Guerras Culturais” – simplificadamente, o processo de visibilização do conhecimento produzido por grupos étnica e sexualmente excluídos (africanos de diferentes grupos, indígenas de diversas origens, homossexuais, mulheres, não cristãos etc.) – perceberemos que Todorov veio propor, com todas as suas contradições, a reinterpretação desses fenômenos como sinais de uma transformação cultural ampla, que afetou tanto nossa experiência em sociedade como nossa formação individual, explicitando a relação inexorável entre literatura e vida. Essa transformação exigiu de Todorov não apenas um posicionamento teórico-crítico antiessencialista, para evitar os dois polos da disputa, como também reformulações de suas práticas de leitura literária. Uma vida, uma crônica, uma aula.
Notas
[1] Récits Aztèques de la Conquête (1983); Nous et les Autres (1989); Les Morales de l’Histoire (1991); Une Tragédie Française, Été 1944: Scènes de Guerre Civile (1994); La Vie Commune: Essai d’Anthropologie Générale (1995); L’Homme Dépaysé (1996); Le Jardin Imparfait: la Pensée Humaniste en France (1998); La Fragilité du Bien: le Sauvetage des Juifs Bulgares (1999); La Littérature en Péril (2007); La Peur des Barbares: Au-delà du Choc des Civilisations (2008); Les Ennemis Intimes de la Démocratie (2012); Insoumis (2015).
[2] No Brasil, esses estudos foram traduzidos e reunidos pela primeira vez sob o título de Questões de Literatura e de Estética em 1988.
Confira abaixo um vídeo em que Todorov fala sobre a xenofobia na Europa: