(Seleção de Luís Araujo Pereira)
[1]
Reflexões no dia
dos meus anos
Faço anos.
Quantos já não interessa.
Por uma questão de glândulas
infalivelmente na barba e nas têmporas
aos poucos e poucos envelheço.
Faço anos e neste dia
há sempre umas recordações interessantes
ao mesmo tempo que mudamos na aparência
e aos outros parecemos bem conservados
enfim!
Não expirado o prazo da minha ausência
no meu bairro da Munhuana
no preciso dia do meu aniversário
lá com certeza o dia amanheceu
todo assoado de nuvens.
Ah, tudo se transforma!
Eu que faço anos
e o tempo inexorável não perdoamos
aos que não acreditam em augúrios
e apesar das mil coisas tristes
os cabelos brancos embelezam-me as fontes
e as notícias nem sempre são todas más
e em segredo algumas
até me rejuvenescem intimamente.
Faço anos
e o bolor da saudade arroxeia-me as olheiras
e dá-me um ar de homem circunspecto
que lê Camus.
Mas ao mesmo tempo que admiro as viagens espaciais
os antibióticos
e por exemplo a televisão
ainda me embriaga a retina
um quadro de Portinari
o andar cadenciado duma mulher
um bom jogo de futebol
e um autêntico céu azul a milhafres de nada.
[2]
Cântico do pássaro azul
em Sharpeville
Os homens negros como eu
não pedem para nascer
nem para cantar.
Mas nascem e cantam
que a nossa voz é a voz incorruptível
dos momentos de angústia sem voz
e dos passos arrastados nas velhas machambas.
E se cantam e nascem
os homens magros de olheiras fundas como eu
não pediram a blasfémia
de um sol que não fosse o mesmo
para uma criança banto
e o menino africânder.
Mas homens somos
e com o mesmíssimo encanto magnífico
dos filhos que geramos
aqui estamos
na vontade viril de viver o canto que sabemos
e tornar também uma vida
a vida de voluntário que não pedimos
nem queremos
e odiamos na ganga africana que vestimos
e na ração de farinha que comemos.
E com as sementes rongas
as flores silvestres das montanhas zulos
e a dose de pólen das metralhadoras no ar de Sharpeville
um xitotonguana azul canta num braço de imbondeiro
e levanta no feitiço destes céus
a volúpia terrível do nosso voo.
[3]
Canto do nosso amor
sem fronteira
Estamos juntos.
e moçambicanos mãos nossas
dão-se
e olhamos a paisagem e sorrimos.
Não sabemos de áreas de esterlino
de câmbios
vistos de fronteira
zonas do marco e do dólar
portagem do Limpopo
canais de Suez e do Panamá.
Amamo-nos hoje numa praia das Honduras
estamos amanhã sob o céu azul da Birmânia
e na madrugada do dia dos teus anos
despertamos nos braços um do outro
baloiçando na rede da nossa casa na Nicarágua.
Ou
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas da praia da Polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios com as negras amoras de Jerusalém
ambos entristecidos ao galope dos pés humanos
sem ferraduras mas puxando riquexós
só de ver puxar nós também puxamos
nas transpiradas ruelas antigas
da ilha de Moçambique.
Oh, beijemo-nos, amor
teus cabelos sussurrantes
na esplêndida nudez morena do meu peito
que são nossos os céus sulcados de xiricos e aviões
e nossos irmãos os povos dos outros paralelos
até mesmo os pobres “boers” solitários
na cruzada de amor em que me abraças numa rua
principal da cidade de Pretória descontraidamente
como se fosse no bairro de Xipamanine.
Mas bem no fundo das almas
e dos corpos tatuados de esperança
o clítoris das montanhas nos sexos das nuvens
pátria do nosso desespero mais desesperado
pátria dos pés descalços na brancura do algodão
pátria de beijos e promessas de mais beijos
é o nosso genuíno grito mais gritado
a levantar no cosmos a beleza do nome
não renegável de Moçambique!
[4]
Latitude zero
E a nossa casa, Mãe
nosso lar de velhas paredes de caniço
já não está lá
no lugar onde o pai do pai do teu pai
ao sol e à chuva
em doze luas de trabalho
a construiu.
E no sítio da tua sepultura, Mãe
debaixo das mafurreiras de frutos de ouro
onde a bebida fermentava a missa de cocuana Matsinhe
pesam os muros de cimento
que o senhor das terras levantou
ao abrigo da lei da concessão de terrenos vagos
onde não existe ninguém
e só vivem negros
mulatinhos e negras.
Dentro das coordenadas geográficas
registadas numa planta do cadastro da circunscrição
dormes o teu sono perpétuo, Mãe
ao som das blasfémias que não chegaste a ouvir
mas gostarias de ouvir também contra eles
e quererias também sentir contra eles minha Mãe.
E hoje que a nossa casa de paredes de caniço
e os trinta e cinco pés de mandioca
foram esmagados pelas lagartas de aço
do monstro Caterpillar do senhor concessionário
o secular desespero
planta milho que não nasce
e mapira que não cresce mas dói
na latitude zero do talhão de pedras e cobras
da reserva indígena onde moram blasfemos
nós os negros, os mulatinhos
e as negras.
[5]
A cadeira
Ajeito na velha mesa a toalha aos quadradinhos.
Ponho-me os pratos, os talheres e um copo.
Eu mesmo me estendo a travessa do arroz.
Levanto-me por causa da garrafa de água.
Torno a levantar-me em busca de um garfo.
Solitários cotovelos fincados na mesa
nos punhos contraídos apoio o mento.
Entretanto, de mim vai-se esquecendo o almoço.
Engulo um nó de saliva. É insulso o jejum.
Em outro lado dos quadradinhos da toalha
completamente desprovida de sentido
observa-me compassiva
uma cadeira vazia.
………………………………………………………………..
Pela terceira vez me levanto.
Mas onde é que está o raio do saleiro?
Glossário
Cocuana: Velho. Avô. Termo respeitoso para com todo ancião indistintamente do sexo.
Imbondeiro: Nome comum dado a várias espécies de árvore do gênero Adansonia. Baobá. Árvore sagrada.
Machamba: Plantação para onde ia a mão de obra forçada.
Mafurreira: Árvore meliácea de cujos frutos se extrai o óleo chamado “mafurra”.
Mapira: Grão de sorgo ou de milho fino ou miúdo.
Xitotonguana: Passarinho saltitante.
Sharpeville: Lugar da África do Sul onde em 20 de março de 1960 ocorreu uma repressão sangrenta aos trabalhadores negros das minas.
Perfil
José João Craveirinha nasceu em Maputo, em 28 de maio de 1922, e morreu na mesma cidade, em 6 de fevereiro de 2003. Foi jornalista, poeta e cronista. É o principal nome da poesia de Moçambique, ao lado de Rui de Noronha, Kalungano (Marcelino dos Santos), Sérgio Vieira, Orlando Mendes, Rui Nogar, Sebastião Alba e Noémia de Sousa, entre outros autores. Viveu a saga da resistência ao colonialismo português e participou ativamente do Movimento da Negritude. Atuou na Associação Africana, onde desempenhou atividades de natureza política. A resistência ao colonialismo e a sua participação nas ações da Frelimo motivaram a sua prisão, em 1965, pela polícia política portuguesa; julgado e condenado, cumpriu pena até 1969. Recebeu inúmeros e importantes prêmios, entre os quais se destaca o Prêmio Camões, em 1991. A Universidade Eduardo Mondlane concedeu-lhe, em 2002, o grau de Doutor Honoris Causa e, como parte da homenagem, lançou na ocasião a sua Obra Poética, com a inserção de vários poemas inéditos. Foi o primeiro presidente da Assembleia-Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. Foi também presidente da Assembleia-Geral da Associação Moçambicana de Língua Portuguesa. Escreveu os seguintes livros de poemas: Xigubo (1964), Karingana ua Karingana (1974), Maria (1980), Babalaze das Hienas (1997) e Poemas da Prisão (2003). Com Craveirinha, surge pela primeira vez a afirmação nacionalista. Além de expressar o universal, a sua riqueza poética incorpora elementos do cotidiano, os afetos, os laços familiares, a luta anticolonial, a simplicidade das coisas e, sobretudo, a sua devoção a Moçambique. Deixou muitos poemas inéditos e dispersos. Para uma leitura detalhada sobre o contexto histórico, sociopolítico e literário em que viveu José Craveirinha, o livro de Manoel de Souza e Silva, Do Alheio ao Próprio: A Poesia em Moçambique (Editora da Universidade de São Paulo, Editora da UFG, 1996), oferece um rico e bem exposto panorama que inclui análise de três décadas de produção cultural.
Adorei! Não conhecia o poeta. Gostei especialmente do último poema A Cadeira.
Belíssimo. O da Mãe é doído. O da Cadeira também. Muito grata por essa postagem.
Queridas Dairan e Silvia, agradeço os comentários. Abraços
OH!! QUE BELO POEMA DE JOSÉ CRAVEIRINHA: AFORISMO “havia uma formiga compartilhando comigo o isolamento e comendo juntos. Estávamos iguais com duas diferenças não era interrogadas e por descuído podiam pisá-la mas aos dois intencionalmente podiam pôr-nos rastos mas não podiam ajoelhar-nos.
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Que obras tão lindas.