Como abordar num longa-metragem a essência, a beleza, a genialidade, as contradições e o legado do Cinema Novo, o movimento mais significativo do cinema brasileiro? Cinema Novo, O Filme, que volta a ser exibido nesta segunda-feira, dia 27, às 12h40, na 10ª Mostra O Amor, A Morte e as Paixões, além de dar conta dessa tarefa hercúlea a que se propôs, é mais do que isso. A obra dirigida por Eryk Rocha instiga, provoca, faz refletir, emociona e ressignifica, provando que o Cinema Novo, o movimento, apesar de restrito a uma época, de certa forma ainda mantém-se vivo e pulsante.
Filho de Glauber Rocha, Eryk Rocha já dirigiu produções marcantes e premiadas como Transeunte e A Rocha que Voa, mas, ao se debruçar sobre o movimento que teve seu pai como o nome mais famoso, o jovem cineasta surpreende, pois vai além da nostalgia e da homenagem. Para começar, o diretor abre mão do didatismo, abdicando da narração em off e até das legendas, o que pode preocupar o espectador à medida que a projeção avança e temos a noção do quanto o movimento foi diverso e prolífico. Não faltam, claro, cenas icônicas como os rodopios de Corisco em Deus e O Diabo na Terra do Sol, o impagável nascimento de Macunaíma, no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, ou Norma Bengell nua na praia em Os Cafajestes, só para citar as mais famosas.
Porém, mesmo quem não consegue identificar todos os filmes citados não precisa se preocupar, pois o sentido do longa também se constrói numa veia paralela graças à maravilhosa montagem – necessário frisar a bela profusão de cenas com personagens em marcha –, e aos depoimentos dos diretores. Entrevistas retiradas de material de arquivo dos anos 60 predominam, e a verdade dos cineastas, utópica ou não, mostra artistas preocupados com a busca da originalidade não apenas como um objetivo estético, mas como uma forma de fazer do cinema um ato político, com o povo como foco principal.
Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e, claro, Glauber atuavam muitos vezes como um grupo, não só ideologicamente, mas contribuindo diretamente nos trabalhos uns dos outros, revezando-se entre o roteiro, a produção ou a montagem dos filmes. O tom de esperança e luta muda com o final dos anos 60 e começo dos anos 70. O peso da repressão nos anos de chumbo dilui a unidade do grupo e enfraquece o Cinema Novo como movimento. Mesmo os diretores que morreram cedo, como Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, tiveram a chance de fazer um balanço do cinema que criaram. Os sobreviventes, em contrapartida, ajudam a compreender o cinema brasileiro num contexto mais abrangente.
Embora a narrativa de Cinema Novo, O Filme não seja linear, nem o seu tempo seja sempre o cronológico, Eryk Rocha não deixa de fazer um contraponto entre o Brasil e o cinema nacional do auge do movimento com o País e o nosso audiovisual de agora. Das injustiças sociais calamitosas geradas pelas disputas entre os grupos dominantes pelo poder e pelo comando da nação às dificuldades do cinema brasileiro diante da indústria cinematográfica norte-americana, é impossível não ver o quanto muitas das bandeiras do Cinema Novo ainda são pertinentes. Outras, claro, soam datadas e até ingênuas, mas Cinema Novo, O Filme não foge à luta e coloca em close as contradições do movimento, como o fato de que ninguém ali pertencia à camada mais desfavorecida da população. Esta era uma das maiores preocupações do grupo, o que por si só não tira, claro, a legitimidade de obras-primas como Cinco Vezes Favela, Barravento ou Vidas Secas.
Confira abaixo o trailer do documentário: