O conto A Menor Mulher do Mundo, do livro Laços de Família, de Clarice Lispector (1960), narra a história de um explorador francês, na África Equatorial, que se deparou com uma mulher de 40 centímetros: “entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que a Natureza tem de exceder a si própria”. Dessa descoberta resulta uma publicação num “suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro”. Assim descreve Clarice a aparição desse ser e nos relata a reação, o estranhamento, das pessoas diante dessa visão: uma mulher não quis olhar pela segunda vez “porque me dá aflição”, outra “jamais deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da Senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar um carinho”.
A palavra de Clarice, os recantos obscuros que ela nos obriga a revisitar, fala por si só e não precisaríamos tecer relações entre sua escrita e a psicanálise, bastaria o deleite que a leitura do texto nos traz. Mas a inquietação que nos provoca essas questões tão familiares e que nos causam tanto estranhamento ? como, também, o feminino, a maternidade, o amor, a posse, as identificações – é que nos fazem, como o explorador de Pequena Flor, ficar desconcertados no nosso saber. “Foi nesse instante (ao examinar a barriguinha do menor ser) que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.” E esse mal-estar nos convocou a pensar a clínica de crianças, dentro do campo psicanalítico, principalmente nas questões que Clarice toca, tão caras ao mundo feminino: o desejo má/terno, o feminino e a cruel necessidade de amor.
De que serve um amor de mãe? Em que consiste o amor materno? Sabemos que somos ambivalentes quanto ao nosso amor e até mesmo na relação mãe-filho isso comparece. No entanto, há circunstâncias nas quais a face cruel do amor materno, em lugar de recalcado, é atuado de forma excessiva, gozosa, na relação com a criança.
Sempre nos interrogamos sobre a nossa condução nas questões da educação e do caráter do pequenino. Sofremos a cada notícia, um filho que é sequestrado, que morre no tráfico, que sofre um acidente, que tem uma desilusão amorosa, transitivamente sentimos o que outra mãe está passando diante de cada situação e isso nos dói no corpo. Nunca entendemos quando acontece alguma crueldade voltada para a criança, um exemplo desses é o caso dos Nardoni, como se joga uma criança, um filho, pela janela? O caso Isabella Nardoni refere-se à morte de Isabella, menina de cinco anos, jogada pela janela do sexto andar na noite de 29 de março de 2008. Mereceu uma grande repercussão na mídia porque o homicídio doloso foi praticado pelo pai e pela madrasta da criança e foram ambos condenados. Podemos ter desejos loucos no nosso íntimo, mas precisamos realizá-los?
E assim a trama da relação materna vai sendo tecida, e crianças com sintomas vão surgindo na clínica: traços de neurose obsessiva, insônia, medos, anorexias, síndrome de pânico, hiperatividade. Sintomas que são mais fáceis de serem medicados do que uma análise da fantasia que sustenta esses sintomas. A medicalização desresponsabiliza os pais na condução do tratamento e, se os sintomas persistirem ou o remédio for ineficaz, não está adiantando nada, muda-se o medicamento. Nada contra a medicalização nos casos em que é necessária ? uma exceção –, mas alguns pais se sentem aliviados quando encontram uma patologia de ordem médica que justifique os sintomas, limpando assim sua participação direta na construção desse transtorno.
Como é difícil aceitarmos que a relação mãe e filho é cunhada no amor e no ódio! Afastamos do nosso pensamento qualquer ideia da ordem da crueldade em relação aos nossos filhos, mas a própria possessão, que faz parte do amor, já é um exercício dessa mesma crueldade.
O amor materno é marcado pela possessão, lembrando Clarice: “Quem já não desejou possuir um ser humano só para si?”
A literatura, mais uma vez, nos exemplifica com uma das figuras mais notórias de uma obra-prima do teatro trágico de Eurípides (1991), no século V a.C, Medeia. A tragédia tem como tema central a paixão e o desejo de vingança de Medeia, que é abandonada por Jasão, quando este contrai novas núpcias com a filha do rei da região, Creonte. Ela é mulher traída movida por uma fúria mortífera e pratica vários crimes e transgressões em nome desse amor avassalador, da ira e do ciúme que sentia por Jasão. Em lugar de ir ao encontro da própria morte, ela se vinga de Jasão sacrificando os próprios filhos. Para Medeia seus filhos lhe causam horror, filhos malditos de mãe odiosa, como acontece com várias crianças na vida real. Na peça, os filhos de Medeia e Jasão têm voz apenas uma vez, no exato momento que estão sendo mortos pela mãe: ? “Ah! Que fazer? Como fugir de minha mãe … ? “Não sei, irmão querido! Estamos sendo mortos” e são mortos pelo desejo da mãe. Medeia transpõe a mãe para encarnar “uma verdadeira mulher”, segundo Lacan. Uma verdadeira mulher é aquela que escolhe ser mais mulher que mãe, retorno de um desejo feminino não regulado pela maternidade.
Mas além de toda essa denúncia sobre a crueldade feminina, seja em relação ao amor possessivo, ao ciúme paranoico, à frieza das mulheres narcísicas, ódios, domínios, voracidade, às medeias, entre outras, também há, por parte da sociedade, uma crueldade em relação especificamente ao sexo anatômico feminino. E isto sem qualquer piedade, antes mesmo de qualquer insinuação de posição feminina ou masculina, ou mesmo algum resquício de singularidade do sujeito no ato, como, por exemplo, na China, que desde 1976 estabeleceu uma política de controle demográfico que permite aos casais um único filho. Tal política tem efeitos sociais gravíssimos: 111 milhões de chineses jamais se casarão, 6 milhões de meninas chamam-se Lai-di ou Não-di (chame por um irmão, traga um irmão) – e a prática sistematizada do infanticídio das crianças do sexo feminino, do qual é impossível fazer estatística, além do abandono de mais de 2 milhões de recém-nascidas (dados da Folha de S. Paulo, 11/1/99). Aqui podemos invocar a frase freudiana enigmática de que literalmente: “A anatomia é o destino”.
Há um documentário chamado É Menina, sob a direção de Evan Grae Davis, exibido no GNT, em que as mãe indianas relatam, em uma roda de mulheres, quando inquiridas pelo repórter, quais eram as maneiras pelas quais matavam as filhas: torcendo o pescoço, colocando veneno no leite, não dando comida… assim como se fosse a prática mais natural do mundo, sem nenhum constrangimento de falar para uma televisão. A reportagem foi realizada na China e na Índia.
Seguindo o pensamento de Jacques Derrida, se há um discurso que pode reivindicar “a causa da crueldade psíquica como assunto próprio”, se chama psicanálise. Para a psicanálise, não existe álibi.
Confira abaixo vídeo da psicanalista Beatriz Valle sobre o tema: