Deitado em um dos bancos da Igreja São Francisco de Paula, na cidade de Goiás, o médico e escritor Heitor Rosa analisava, fascinado, a pintura do teto do templo erguido em 1761. Ele já conhecia aquele ponto de visitação turística da antiga capital goiana, mas naquele dia aproveitou a tranquilidade da hora para obter maior conforto e se entregar aos devaneios próprios de um observador inquieto, amante de todas as formas de criação artística. “Como nunca reparei nessa pintura?”, questionou a si mesmo. Impactado, foi além: “De quem é a autoria?”
Quase cinco anos depois ele conta à Ermira que naquele momento se sentia meio órfão após a publicação de Julgamento em Notre Dame, romance ambientado na França do século 14. “Depois que você pare um livro, fica órfão, sem poder conversar com os personagens”. A maestria daquele misterioso pintor, entretanto, o intrigou. E sem nenhum planejamento prévio, Heitor Rosa se entregou à busca incansável por informações que pudessem dar vida àquele personagem.
André Antônio da Conceição tornou-se assim não apenas uma obsessão, mas um companheiro por mais de quatro anos e o tema central da nova obra do ficcionista, A História de André da Conceição – O misterioso pintor de São Francisco de Paula, editado pelo selo Cânone, que será lançada no dia 31 de março, às 20 horas, na sede do Conselho Regional de Medicina, em Goiânia, e em abril no Museu Casa de Cora Coralina, na cidade de Goiás.
A ressurreição de André Conceição
Heitor Rosa buscou respostas sobre o talentoso pintor ali mesmo, na antiga Vila Boa, entre amigos, museus e pesquisadores da história local. Descobriu apenas o nome, André Antônio da Conceição, e um registro de compra de tinta feita por ele, nada mais. “A partir de então usei meu método de semiologia, do personagem e do cenário, para responder à pergunta.”
André da Conceição é um personagem real. Mas, se ele era um Zé Ninguém lá pelos idos de 1869 quando o forro da capela ganhou vida com os desenhos divididos em nove partes, oito delas detalhando cenas da vida de São Francisco de Paula, agora teria a chance de ressuscitar e ganhar importância pelo legado artístico que deixou. Heitor Rosa, admirador do talento de Aleijadinho e Mestre Athayde, principais nomes da obra artística do período colonial mineiro, viu muita semelhança nos traços produzidos por André com aqueles deixados por Mestre Athayde. Seria André seu discípulo?
O livro é literalmente uma viagem. Começa em 1831, na Fazenda das Mercês, entre Villa Rica – hoje Ouro Preto – e Mariana, Minas Gerais, onde nasceu André, e finaliza por volta de 1869 em Vila Boa, cidade de Goiás, onde o pintor pincelou sua arte no teto da Igreja de São Francisco de Paula. André, na concepção do autor, teria vivido menos de 40 anos, num tempo recheado de adversidades e percalços. Onde termina a realidade e começa a ficção?
O questionamento pouco importa. Se desdobrando como médico gastroenterologista e escritor, o autor precisou de muita dedicação nos mais de quatro anos em que formatou a vida do misterioso pintor. “Eu não queria apenas saber quem foi André da Conceição, mas também descobrir como ele conseguia as tintas”. Depois de muito pesquisar pintura, Heitor Rosa descobriu que até o século 19 era muito difícil para um artista conseguir o azul, por exemplo. “Fui ver até como Michelangelo pintava. Fiz uma série de perguntas para que a história tivesse consistência e lógica”.
A semelhança dos traços elaborados por André com aqueles feitos por Mestre Athayde atiçou a imaginação de Heitor Rosa. “Ele deve ter nascido em Villa Rica, mas por que veio para Vila Boa? Qual foi o trajeto plausível naquele período?”. O jeito foi se entregar à arte de escarafunchar. E foram surgindo dificuldades e também muitas surpresas que o leitor pode conferir como ensinamentos da geografia histórica brasileira do século 19.
Com o professor Antônio de Oliveira Melo, de Paracatu (MG), ele conseguiu mapas reais antigos. “Passei meses estudando o trajeto por onde André teria passado. Encontrei serras, como da Canastra e Marcela, tribos indígenas, quilombos, pequenos povoados. Em cada local criei novos personagens dando vida ao vilarejo”, detalha Heitor Rosa.
“Ficção sem pesquisa é invencionice”
Heitor Rosa é um exímio pesquisador. Os 50 anos dedicados à medicina fizeram dele um renomado estudioso da ciência. Dedicação que ele transferiu para a literatura. Não por acaso o amigo, filósofo, cronista e poeta Rubem Alves chegou a compará-lo um dia a Umberto Eco pelos conhecimentos que adquiriu sobre a Idade Média em mais de 20 anos de estudos. O elogio ele refuta, mas na estante de seu escritório estão ao alcance livros raros garimpados nas muitas viagens à Europa, como Horas Canônicas ou o Livro das Horas, cujos destaques são as iluminuras, elementos decorativos criados nos conventos e abadias medievais. Além de obras de Umberto Eco e de Jacques Le Goff, o maior especialista francês em Idade Média.
Para elaborar O Julgamento em Notre Dame, obra já traduzida para o inglês, esse conhecimento foi primordial. Como contar a saga da jovem médica Felice que se dedicou a conhecer a doença Mal dos Ardentes no século 14 sem informações do cenário e comportamento da época? “Fico imaginando a pesquisa que está por detrás da arquitetura da trama. Eu sempre sonhei que a história deveria ser ensinada através da literatura”, comentou o filósofo e cronista Rubem Alves sobre o livro.
O mesmo ocorreu em sua obra anterior, Memórias de um Cirurgião-Barbeiro, que também pode ser lida em inglês e francês. No romance, Heitor Rosa resgata a figura do médico veronês Girólamo Fracastoro, que no século 16 tornou-se uma autoridade em sífilis. “Através de sua narrativa somos introduzidos a um capítulo verdadeiramente extraordinário na história da medicina e da humanidade”, escreveu o também médico e escritor Moacyr Scliar no prefácio, outro amigo cultivado na lida literária. O livro, editado pela Bertrand, foi indicado ao Prêmio Jabuti.
“Eu me inspiro em Manoel de Barros, que disse: ‘Minha literatura é 90% ficção e 10% mentira'”. Brinca o médico e escritor antes de concluir: “Sou um ficcionista. Mas você não pode ser um ficcionista sem pesquisa. Ficção sem pesquisa é invencionice.”
Na trajetória de Heitor Rosa, a paixão pela literatura sempre caminhou junto à devoção à medicina. Aos 18 anos, vivendo em Goiânia, o adolescente de Urutaí, no sul goiano, já tinha devorado toda a obra do filósofo grego Plutarco. Ele se entregou à arte da escrita não apenas elaborando artigos científicos, mas também crônicas sobre a vida universitária para o jornal da Associação Médica Brasileira.
O primeiro livro, Histórias Agudas e Crônicas: do Apêndice ao Avião surgiu em 1997. Publicou depois Os Ossos do Coronel Azambuja (1998), O Enigma da Quinta Sinfonia (2000), Memórias de um Cirurgião-barbeiro (2006), Histórias da Creusa (2009), Coletânea (2010) e Julgamento em Notre Dame (2010). No ano passado ele recebeu do Conselho Federal de Medicina o prêmio Moacyr Scliar de Literatura pelo conjunto da obra.
A História de André da Conceição chega para consolidar um estilo sempre presente na escrita de Heitor Rosa. Além da pesquisa histórica que oferece consistência às suas narrativas, as tiradas de humor e irreverência permanecem intactas. “O senhor não conhece ciúme de santo. É pior do que peste de bruxa ou briga de puta”, diz a André um coronel vilaboense. Mas, antes, ele já tinha ouvido de outro coronel lá nas Minas Gerais: “Tive pensando em botar vosmecê a serviço da fazenda, mas sua mão é muito lisa pra serviço de cabra macho, e também eu não careço de gente letrada, pois não tem serventia pra nada”.
Homenagem a Vila Boa
Heitor Rosa apresenta seu novo livro como uma homenagem à cidade de Goiás e ao tesouro eternizado na Igreja de São Francisco de Paula. A capela do século 18 abriga a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e a imagem do seu padroeiro, restaurada entre 1850 e 1860 por Veiga Valle. É como se o autor saldasse uma dívida da qual foi muito cobrado no meio literário goiano. “Recebi críticas por não escrever sobre temas de Goiás”, revela. Suas obras anteriores têm um pé na Europa da Idade Média ou na medicina. Apesar disso, em 2006 recebeu o troféu Goyazes, na categoria romance, da Academia Goiana de Letras por Memórias de um Cirurgião-barbeiro.
Se é que havia uma dívida ela foi bem paga. O trabalho de pesquisa de Heitor Rosa presenteia os goianos com dados reais sobre a importância que essas terras tinham no período colonial e nos anos seguintes. E muitos desses dados são surpreendentes. A pesquisa bem fundamentada revela ainda muito dos costumes, da arquitetura, do comportamento e do cenário da época. Uma história contada com ilustrações de um ilustre vilaboense, o arquiteto e artista plástico Elder Rocha Lima, que também assina a capa.
Outros tesouros
Aposentado da cadeira de professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, da qual também foi diretor, Heitor Rosa se desdobra como professor de pesquisa no Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER), como médico em seu consultório no Setor Oeste e como escritor. Em casa, no Setor Sul, mantém uma vasta e rara biblioteca, além de pastas que guardam alguns tesouros que um dia, quem sabe, poderão se transformar em ricos ingredientes para novas obras.
Médico e amigo de Cora Coralina em seus últimos 15 anos de vida, Heitor Rosa ouviu da voz da poetisa, morta em 1985, o poema inédito Vida que, segundo ela, era o seu preferido e que pretendia escrevê-lo. Por sorte, naquele dia o médico tinha um gravador em mãos e pôde registrar o momento. Coube ao guardião de Vida torná-lo público 30 anos depois em uma ampla reportagem do jornal O Popular. Uma cópia da gravação também foi entregue ao museu Casa de Cora, na cidade de Goiás, mas a original permanece com Heitor Rosa, que preserva ainda outros escritos relacionados à poetisa.
Em outra pasta estão cartas que o médico e escritor trocou durante mais de 30 anos com o maestro e compositor paulistano Mozart Camargo Guarnieri. Ex-professor da mulher de Heitor Rosa, a pianista Consuelo Quireze, Camargo Guarnieri foi, durante anos, um visitante contumaz na residência da família em Goiânia.
Embora a proximidade entre ambos tenha ocorrido apenas por quatro anos, Rubem Alves é outro personagem literário na memória afetiva de Heitor Rosa. Não apenas isso. Eles foram assíduos na troca de correspondência e muitos desses escritos foram feitos em forma de crônicas. Crônicas que vieram e crônicas que foram e que agora aguardam o melhor momento para se tornarem públicas.