Em seu quadro Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos (1789), Jacques-Louis David, pintor francês, retrata um controverso episódio ocorrido na Roma antiga. Com a expulsão do derradeiro rei e a instalação da República, dois cônsules escolhidos anualmente ficaram com a incumbência de desempenhar o poder executivo; Brutus foi um deles. Todavia, seus filhos (Tito e Tibério), por terem confabulado contra a República a fim de restabelecer a dinastia dos Tarquínios, foram aprisionados. Brutus (o pai) os sentencia à morte, cumprindo o que lhe cabia como dever do cargo público que exercia. Mediante a obra de David, contemplamos os dois defuntos sendo transportados ao fundo, enquanto isso, as mulheres vociferam uma terrível desolação. Um pouco adiante, na lateral direita, observa-se o cônsul, circunspecto, viril, imerso comedidamente em uma dor colossal.
A imagem retrata a prevalência do bem público sobre o interesse privado. Embora esse pressuposto republicano seja visto como um chavão demagógico em nossa sociedade, em uma ordenação política republicana representa o dever de imolar os benefícios e afetos particulares em prol da coisa pública. Ao buscamos na Roma antiga as raízes da república, percebe-se que, ao mesmo tempo em que o termo república designa um regime político (uma forma de governo), igualmente refere-se a um vocabulário político que elege uma compilação de valores para versar sobre o bem comum: a coisa pública. E nesse regime, se Brutus sacrifica o filho em nome da res publica, caso os filhos estivessem na posição do pai fariam o mesmo.
“Ao buscamos na Roma antiga as raízes da república, percebe-se que, ao mesmo tempo em que o termo república designa um regime político (uma forma de governo), igualmente refere-se a um vocabulário político que elege uma compilação de valores para versar sobre o bem comum: a coisa pública.”
Evidentemente, o sofrimento do cônsul nos comove, porém não cabe nesse cenário republicano retratá-lo como um político cruel que martiriza os próprios filhos em do nome poder. A república exige que seus cidadãos sejam dotados de virtude política – esforço racional e afetivo para se posicionar em consonância com o ponto de vista da coletividade, como bem sublinharam Montesquieu e Rousseau. A ação de Brutus demonstra sua virtude política.
Pode-se pressupor, pelo episódio retratado no quadro de David, que o principal adversário do regime republicano é a utilização particular da coisa pública: usá-la com fins particulares ou dela apossar-se, tomando-a como propriedade particular. A dificuldade de primazia do bem comum na “república” brasileira tem alguns adversários, mas um se destaca: a corrupção. Ela representa o domínio do interesse particular sobre o bem público, e apesar da forte tendência na cultura brasileira que insiste em disseminar midiaticamente a visão capitalista reducionista da corrupção – apenas como a afanação do dinheiro público –, é notório que os estragos causados por esse adversário da coisa pública abrangem um horizonte muito mais amplo e assombroso. Isto é, a corrupção particulariza direitos, cria casta de privilegiados, acentua a desigualdade social, econômica e jurídica, dizima vidas, impede que crianças se alimentem dignamente quando se fraudam licitações referentes à merenda escolar e também impossibilita que as pessoas tenham acesso a uma saúde pública adequada quando se desviam verbas destinadas a ela, anula a confiança entre as pessoas, destrói-lhes o afeto, assim como o reconhecimento delas para com a república.
Por ser um problema de extrema gravidade, a corrupção pode ser apropriada por um discurso pernicioso que – em nome de um suposto “combate” a ela – preconiza a dissipação de grupos e atores políticos que colaborariam para a construção de uma pluralidade de ideias e que enriqueceriam a vida pública. Esse discurso gera um profundo desinteresse pela política. Outrora, a adoção de tal discurso forneceu um arsenal decisivo para que políticos “aventureiros” conquistassem as massas, tomassem o poder e instalassem regimes totalitários, os quais tiveram consequências drásticas para milhões de pessoas. O discurso de aversão à política provoca um esvaziamento da própria política como instrumento hábil para a tomada de decisões e ações públicas que teriam o objetivo de melhorar a vida coletiva. Em seu lugar, cria-se a ideia de centralização das soluções para os problemas de uma nação unicamente em personagens, geralmente figuras fervorosas com retóricas messiânicas que seduzem a massa, instaurando regimes discricionários (fundamentados na transformação de classes em massa), usando a publicidade para manipular as pessoas e empregando muitas vezes o terror político, físico e psicológico, como bem demonstrou Hannah Arendt.
“O discurso de aversão à política provoca um esvaziamento da própria política como instrumento hábil para a tomada de decisões e ações públicas que teriam o objetivo de melhorar a vida coletiva.”
Na ordem do dia da sociedade brasileira, a corrupção em si e o discurso com fins espúrios sobre a corrupção exigem um olhar atento para não cometermos os mesmos equívocos do passado. A saída, talvez, se dê por meio da construção de uma cultura política que estimule as pessoas desde a infância a participarem ativamente da vida pública, distinguindo o problema do discurso.