Billy Blanco versou na voz de Dolores Duran: “Praça Mauá, praça feia, mal falada/ Mulheres na madrugada/ Onde bobo não tem vez./ Praça Mauá, dos lotações de subúrbio/ Lugar comum do distúrbio/ Nos trinta dias do mês./ Se algum dia, eu mandar nesta cidade/ Serás praça da saudade/ Do adeus, da emoção/Praça Mauá, o nome nos traz à mente, um soluço, um beijo quente/ e um lenço branco na mão/ Praça Mauá…”
Pois é, fazia tempo que não via minha cidade. Não conhecia, a não ser por filmes, vídeos e pela tv, o resultado das obras que se fizeram no porto do Rio, ao longo da orla marítima. Foi um impacto. Tudo aberto, espaço amplo, muito bem aproveitado por Santiago Calatrava (que nome), o arquiteto do Museu do Amanhã, que avança mar adentro, como um foguete vazado solto na imensidão. Ver e voar. Como se não bastasse o MAR, Museu de Arte do Rio, expondo a chamada arte dos delirantes (como se não o fôssemos todos), convocados pela curadoria da psicanalista Tania Rivera: Artur Bispo do Rosário, Fernando Diniz e tantos outros revelados e salvos pela psiquiatria libertária de Nise da Silveira, guerreira.
Na sala escura do MAR, a projeção de um documentário de Cildo Meireles, o artista plástico que registrou o sofrimento dos internos de São Cotolengo em Trindade, Goiás. Choro e ranger de dentes, corpos ao sol, em fila, implorando a misericórdia divina: por quê, Senhor? Tanta lágrima, tanta dor, o apelo, o grito de vem nos tirar disso, Senhor! E o implacável silêncio. Segure-se, a emoção é de derrubar. Abertura em contraste, a luz lá fora. Espaço inebriante, o mar largo, sem muros, sem minhocões. Em contraste com a arquitetura do perigo, a paranoica arquitetura militar, fechada em si mesma, cercada, defendida. A Marinha insiste em botar cerquinhas para evitar o encontro – bom ou mau, não importa – com o mar, logo com o mar. As cercas não nos permitiam apreciar os próprios monumentos arquitetônicos que abrigam fragatas, submarinos, navios ao mar alto, agora em repouso, engenho humano.
Andar, caminhar, cumprindo a sina de homo viator, andarilho desejante de saber a pé o que uma cidade tem de íntimo. Andar naquela parte do Rio por suas ruas ensolaradas, como a Sacadura Cabral, em homenagem ao piloto português que cruzou o Atlântico pela primeira vez. Tentei contato com a escravidão, o museu dos escravos, o cais do Valongo, sugestão de um taxista, também negro, que se disse arrepiar a simples lembrança de sua visita a um dos muitos moinhos de gente, coisas nossas. Se arrepiou, gozou, pensei cá comigo, mas não lhe disse nada. Gozar com a escravidão, ora direis, certo, perdeste o senso. E no entanto, se não atravessarmos esse inferno de gozar com o sofrimento, dele não sairemos. Algum dia? Sair pela sublimação? Ali perto, Gamboa, berço do samba, e o Angu do Gomes, sustança de quem anda na rua. Meras sugestões.
Queria conhecer o VLT – Veículo Leve sobre Trilhos. Peguei o metrô no Largo do Machado, saltei na Cinelândia e fui a pé até o aeroporto Santos Dumont, um dos pontos terminais do trenzinho. No meio do caminho, a tristeza de ver as paredes da Igreja de Santa Luzia sem o seu azul. Agora, tudo pintado de branco, mal caiado. Santa Luzia de pó-de-arroz, heresia que me fez lembrar do meu amigo e professor de filosofia Alberto Coelho de Sousa, o primeiro a me mostrar aquele azul, característico. Deus o tenha, como dizia minhavó. Respirei fundo, continuando a caminhada, em direção à Praça Quinze. Deixei pra trás as lembranças do Teatro Maison de France, ao lado da Livraria Francesa – chegou o último livro de Sartre, de Lévi-Strauss? -, tomar um cafezinho em pé no bar da Filosofia, onde um austero professor bebia pinga disfarçada na xicrinha, ou, do outro lado da rua, no Cabaré dos Bandidos, a estudantada nada fingia, de boca na caipirinha.
Hoje consulado da Itália, mas nos anos 1960 vanguarda do movimento estudantil, a Faculdade Nacional de Filosofia, gloriosa Fenefi, paralisava em protesto as ruas do Centro, convidava Sartre e Simone para um bate-papo ciceroenado por Jorge Amado, exibia o filme Limite, para seu próprio autor, Mário Peixoto, senado sozinho na plateia, não deixava o governador Carlos Lacerda entrar no prédio e paraninfar meia dúzia de formandos direitistas (como as coisas mudaram), em flagrante desrespeito à vontade da maioria que havia escolhido Otto Maria Carpeaux, tudo isso à beira-mar, em frente ao MAM – Museu de Arte Moderna –, sente a maresia.
Se os histéricos sofremos de reminiscências, como descobrira Freud, queremos o novo por antídoto. No meu caso, o VLT. Na plataforma, perguntei a um funcionário como é que se anda, e ele, solícito, informou que bastava mostrar a identidade para o fiscal, simples assim, de graça, di grátis, como zoam os goianos. Jogue suas mãos para os céus, se chegar a idoso e contar com as benesses que só a democracia dá. Sentei-me, e sentado fiquei, olhando aquela paisagem deslumbrante, num trenzinho que a Villa-Lobos nada ofenderia. Quem diria, a Avenida Rio Branco sem a tourada dos ônibus, dos carros apressados. De vez em quando, uma motocicleta, um ciclista, ou até um pedestre – e o trenzinho sinaliza, bate um sino, como numa cidade modernantiga.
“Se os histéricos sofremos de reminiscências, como descobrira Freud, queremos o novo por antídoto. No meu caso, o VLT.”
As paradas, sinalizadas como estações de um metrô, têm por nomes Cidade do Samba, Utopia Aquática, Parada dos Navios, e se estendem pela orla acompanhando a série de armazéns do antigo Cais do Porto, até o ponto final, na Rodoviária. Bem na Praça Mauá, o prédio do Touring Club está fechado para obras. Foi lá que bebi pela primeira vez um café colombiano suave, inesquecível. Era o lugar de embarque e desembarque dos turistas que chegavam de navio. O lugar dos lenços brancos acenando, como na canção de Billy Branco.
Um senhor de cabeça branca se acompanhava de uma menina de seus três anos, falante como uma periquita. Ela irrequieta e ele calmo como um avô. De tanto se mexer, quase caiu de sua cadeira, e o avô lhe disse para tomar cuidado. Outro senhor de cabeça branca (era o dia deles), sentado ao lado falou com a menina: – Cuidado, gatinha, senão você vai se machucar. E ela prontamente responde: – Não sou gatinha, sou um cachorro. – Todos rimos, e o senhor, não acreditando no que ouvira, voltou-se para mim e perguntou: – Escutou essa? – Respondi que sim, que ela disse que não era gatinha e sim um cachorro. E rimos de novo. Sentada ao meu lado estava uma senhora a quem observei que a menina não parava de falar e ela me respondeu: – Mulher. – Concordei rindo. Avô e neta desceram na próxima estação e a menina, saltitando na ponta dos pés nos seus sapatinhos vermelhos. Voltei-me à senhora, dizendo-lhe: – Olha lá, na ponta dos pés. E a senhora me respondeu: – Não disse? Mulher. Risos.
A senhora ao lado me perguntou se estava perto do Centro Cultural do Banco do Brasil aonde iria para uma exposição. Respondi que ainda faltava uma estação. Comentamos o belo grafite de Kobra, um mural imenso, três mil metros quadrados vivamente coloridos, sobre etnias indígenas dos cinco continentes. – A fotografia ou o filme não fazem justiça, o grafite é muito mais bonito ao vivo – disse a senhora. – Parece que é o maior grafite do mundo, acrescentou.
“Ela vem chegando/e feliz vou esperando/ a espera é difícil/ mas eu espero cantando”, os versos de Jorge Benjor me ajudam. Beatriz Valle vem chegando. Mulher amada chegando ao teu encontro, que mais queres da vida? Combinamos de almoçar no restaurante do Museu do Amanhã, mas as instalações ainda não estavam prontas. Naquele solão, enquanto esperava, comi acarajé, quirela (milho quebrado que se dá aos pintos e pássaros, segundo o Aurélio, mas que, nas mãos das pretas cozinheiras vira um pitéu para nós também), comendo e circulando pelas barraquinhas espalhadas pela praça para todas as tribos. Beatriz gostou de um turbante africano, conversamos com a vendedora, elegante no seu penteado rastafári, que nos mostrou as artes da dobradura do pano colorido. Muita cor, muita luz, muito espaço. Zazoeira.
Pedi que Beatriz me tirasse umas fotos em frente ao edifício da Rádio Nacional – agora em obras. É um prédio cheio de histórias. Rádio Nacional – mater et magistra – me ensinou a amar o Brasil bonito. Música, novelas, o radio-teatro, as crônicas da cidade lidas em cinco minutos, os programas de humor, como o Balança mas não cai. Foi ela quem me fez escutar pela primeira vez Villa-Lobos, Gershwin, Mahler, Pixinguinha, Tom Jobim, Abel Ferreira, o choro, o samba, a música erudita, a animação dos programas de auditório, Marlene, Emilinha. Minha mãe e minha madrinha me levavam aos shows musicais, aos ensaios e ao encontro em pessoa das vozes que amávamos. São tantas as emoções, Roberto Carlos. Longa é a arte, tão breve a vida.
“Vento do mar no meu rosto e o sol a queimar, queimar/ Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar/ Rio de Janeiro, gosto de você/ Gosto de quem gosta deste céu, deste mar, desta gente feliz/ Bem que eu quis escrever um poema de amor/ e o amor/ estava em tudo que eu vi/ em tudo quanto eu amei/ E no poema que eu fiz/ tinha alguém mais feliz/ que eu/ o meu amor/ que não me quis.” Desde menino, fico intrigado com o final da letra de Valsa de uma cidade, de Antonio Maria e Ismael Neto. “Alguém mais feliz que eu, o meu amor, que não me quis…”, quem terá sido? Um amor de Antonio Maria, que dizia “ninguém me ama, ninguém me quer”, para ouvir na voz de Nora Ney ou Nat King Cole? Sabe-se que Antonio Maria e Dolores Duran foram apaixonados. Terá sido Dolores?