De Coimbra, Portugal − A tarde ensolarada de primavera no sábado, dia 22, em Coimbra, convidava a um passeio pelas margens do Rio Mondengo ou pelos parques e monumentos da cidade histórica portuguesa. Mas como o debate político nestes tempos conturbados da vida brasileira não tem deixado ninguém indiferente, foi difícil resistir ao apelo de uma palestra marcada para as 16 horas sobre os dilemas do País, ainda mais sendo o conferencista um potencial candidato à Presidência da República.
Portanto, não foi nenhum espanto que o auditório III do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra (UC) estivesse lotado de estudantes e pesquisadores – a esmagadora maioria, é claro, formada por brasileiros – que se prontificaram a ouvir as ideias de Ciro Gomes, 59 anos, ex-governador do Ceará e ex-ministro nos governos Itamar Franco e Lula. O debate – que integrou um ciclo de conferências que Ciro tem feito por universidades europeias − se estendeu por quase quatro horas e se prorrogou pelos corredores e na calçada defronte o instituto, um dos belos prédios centenários que compõem a UC, localizado sob o Aqueduto de São Sebastião, uma obra do final do século 16.
Como era de se esperar também, o debate com Ciro Gomes foi bastante acalorado e marcado pelo tom provocativo que é uma marca da sua trajetória política. O ex-ministro distribuiu farpas para todo lado e, por diversos momentos, bateu boca abertamente com integrantes da plateia. Chamou Dilma de incompetente (“Não tem treinamento nem para ser minha secretária”), referiu-se a Temer e a seus ministros como “canalhas”, disse que a única reforma estrutural que Lula fez foi a introdução da tomada de três pinos (aliás, um mote que tem repetido com frequência), afirmou que o prefeito de São Paulo, João Doria, não passa de um farsante e que Marina Silva, denominada por ele como a mulher “do xale na cabeça”, não tem nenhuma ideia de projeto nacional.
Ciro foi ainda enfático ao descartar a possibilidade de compor uma chapa presidencial como vice de Lula (“Não há nenhuma hipótese. Lula passionaliza a política. Ele vai passar a campanha inteira se explicando e, se for eleito, não vai conseguir governar”) e garantiu que, se for preciso “vender a alma”, não será candidato. Reiterou também que o “dream team” seria uma candidatura à Presidência da República encabeçada por ele, tendo o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) na vice-presidência.
“Lula passionaliza a política. Ele vai passar a campanha inteira se explicando e, se for eleito, não vai conseguir governar.”
Entre aplausos e protestos, a plateia se dividiu. As observações pouco lisonjeiras sobre Dilma – contrabalançadas, em parte, pelas repetidas referências do ex-ministro à honestidade da ex-presidente e à fidelidade dele a Dilma no processo de impeachment – foram recebidas aos gritos de “misógino”. Ciro tentou refutar, afirmando que, quando foi governador e prefeito, metade do seu secretariado era composta por mulheres, e que se referia não ao fato de Dilma ser mulher, mas porque o seu governo foi comprovadamente um desastre.
“Como, assim, coronel? Qual hierarquia represento? Não levo desaforo para casa.”
A saia-justa só se acentuou quando repreendeu uma pesquisadora que lhe questionara sobre a sua defesa do agronegócio e que lhe pareceu não estar prestando atenção a sua resposta – “Preste atenção, mulher. Você não quer ouvir, mas só apresentar uma tese!” – e reagiu de forma exaltada quando uma outra lhe chamou de “coronel”. “Como, assim, coronel? Qual hierarquia represento? Não levo desaforo para casa”, disse, rispidamente. A pesquisadora repreendida retirou-se da sala acusando-o de grosseria e “racismo” e foi acompanhada por outras mulheres – no entanto, é preciso acrescentar, um grande contingente da ala feminina permaneceu até o final e muitas até pediram para tirar uma selfie ao lado de Ciro.
Provocador intencional
A persona pública de Ciro Gomes pode dar a impressão de um temperamento explosivo difícil de ser contido – aliás, um questionamento que foi feito a ele por pessoas presentes na palestra. Um estudante chegou mesmo a perguntar se não seria Ciro o principal adversário dele mesmo. Na conversa que teve com a plateia, no entanto, o ex-ministro deu mostras de que esse estilo contundente e por vezes agressivo não é fruto só do impulso, mas algo deliberadamente cultivado. “Sou provocador, sou treinado para isso”, afirmou.
Seria essa a sua estratégia para se diferenciar das figuras do mundo político tão domesticadas e padronizadas pelo marketing? Após o debate, para um grupo remanescente de pessoas que o acompanhou até a saída do instituto, Ciro disse que a sua postura precisa ser compreendida no contexto da sua cultura política de origem, o Nordeste. Lá, conforme ele, aquele que “não leva desaforo para casa” é considerado uma pessoa de caráter forte, independente, que tem autonomia. E parece ser esta a marca que ele pretende imprimir na sua candidatura.
Na proposta que apresentou como saída para os impasses brasileiros – e que, diga-se de passagem, enfocou principalmente aspectos econômicos –, Ciro Gomes deixou entrever a necessidade de uma liderança forte para comandar um projeto de reconstrução nacional, que eleja como estratégicos quatro setores: o agronegócio, o complexo industrial militar, o complexo industrial da saúde e a indústria petroquímica. Aqui, é preciso entender que essa “liderança forte” não é sinônimo de uma liderança “autoritária” – como prega um Bolsonaro, por exemplo −, mas um líder que reúna os predicados que estejam à altura da resposta à urgência que Ciro denomina de “restaurar a ordem de confiança nacional por meio da Presidência da República”.
Evidente que essa proposta traz de volta a tão desgastada palavra “pacto” – ainda mais neste momento de rupturas que parecem intransponíveis no País. Ciro, porém, acredita que a fissura entre o “rentismo” (os que ganham com os juros estratosféricos que se praticam hoje no Brasil e que são os únicos beneficiados pela política econômica do governo Temer) e o setor produtivo no País é tamanha que é possível um acordo com a parcela da burguesia brasileira que está sendo profundamente atingida pela crise. Segundo ele, as 300 maiores empresas nacionais estão endividadas até o pescoço e o nível de industrialização no Brasil voltou ao patamar de 1910.
“Ciro também vê a necessidade de uma reforma futura na Previdência Social, mas não da forma como vem sendo feita pelo atual governo.”
Daí que, na sua visão, um projeto nacional que retome o ciclo de industrialização e que reduza a nossa dependência tecnológica, por meio de mais investimento em pesquisa, possa retomar o caminho do desenvolvimento e reduzir o desemprego. Medidas como esta aliadas a uma reforma fiscal que impusesse, por exemplo, um imposto sobre lucros e dividendos – ele reiterou que o quadro tributário brasileiro permanece o mesmo da ditadura militar, regressivo e antipopular, punindo sobretudo os trabalhadores − seriam as saídas para tirar o Brasil desta que é a pior recessão de toda a sua história, acredita o ex-ministro. Ciro também vê a necessidade de uma reforma futura na Previdência Social, mas não da forma como vem sendo feita pelo atual governo. E diz que o propalado déficit previdenciário é uma mistificação e que a reinserção dos desempregados e o ingresso dos jovens no mercado de trabalho seriam suficientes para equilibrar as contas da Previdência.
O ex-ministro reiterou ainda que nunca foi hostil ao mercado e ao setor privado, mas o modelo do laissez-faire, segundo ele, já mostrou – como o provou a crise econômica mundial de 2008 – que as rédeas inteiramente soltas do mercado tendem a provocar grandes desequilíbrios. Disso decorre a sua oposição à “prostração ideológica” do discurso neoliberal, com sua pregação de um Estado mínimo e da maior autonomia possível ao mercado, e a sua defesa de uma política de Estado que recupere o projeto de planejamento estratégico, metas e sistemas de avaliação e controle.
“Ciro, já se despedindo do pequeno grupo que continuou dialogando com ele na calçada, diz que não é nenhum outsider (uma cutucada em Doria?), tem uma extensa experiência acumulada na política e quer se tornar presidente do Brasil para “fazer história”.”
A pergunta que fica é se Ciro Gomes, com seus ínfimos 4% nas pesquisas de intenção de voto para as eleições de 2018, uma estrutura partidária reduzida e sem o apoio explícito, pelo menos até agora, de grupos econômicos nem de movimentos sociais, teria alguma chance de se eleger presidente e, caso o fosse, reunir as condições para ser essa liderança forte necessária à reconstrução do País. A noite finalmente cai em Coimbra neste longo dia de primavera quando Ciro, perto das 21 horas, já se despedindo do pequeno grupo que continuou dialogando com ele na calçada, diz que não é nenhum outsider (uma cutucada em Doria?), tem uma extensa experiência acumulada na política e quer se tornar presidente do Brasil para “fazer história”. Se a História permitirá que ele seja o grande líder que anseia ser, só o tempo o dirá.
Rosângela Chaves está em Portugal como bolsista do programa de doutorado-sanduíche da Capes, na área de Filosofia, na Universidade de Coimbra