Com seu sotaque de Sobral, forte e destemido, Belchior avisava:
“Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: conheço bem o meu lugar!”
E emendava:
“Olho de frente a cara do presente
E sei que vou ouvir a mesma história porca.
Não há motivo para a festa, ora esta!
Eu não sei rir à toa
Fique você com a mente positiva
Que eu quero a voz ativa
Ela é que é uma boa.”
Estes versos agrestes só podiam vir de um compositor que sabia lidar com a aridez. Eles só poderiam ser entoados por uma voz que se avizinhava a um aboio de vaqueiro, estrondosa, trovoante, que conseguissem imprimir mágoa e lirismo a cada nota. Talvez Belchior tenha sido, como alguns disseram, o cantor e compositor mais subestimado de sua geração. A concorrência era muito forte e ele vinha de um canto do Brasil onde os obstáculos eram maiores. Ainda assim, sua voz se fez ouvir, suas músicas insistiram em ser cantadas e o legado ficou.
Que legado, porém, é este? Belchior tinha tamanha singularidade que fica complicado teorizar a respeito. Surgido nos anos 1970, ele era uma voz que cantava o exílio, o deslocamento, a resistência a um período político cerceador, mas que não caía na tentação do panfletarismo juvenil. Com referências do rock, do folk e de outros ritmos contemporâneos, mantinha uma pegada ligada à terra, ao homem, à luta. Dos sertões de onde provinha, era sobretudo um forte. Força que se expressava no tom grave potente, na complexidade das melodias, na construção de métricas bem lapidadas.
Isso também era ilustrado no visual um tanto exótico, de um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, mas com uma personalidade da gota serena. O abundante bigodão, um sorriso que apenas se insinuava e um olhar de tristeza irrevogável faziam de Belchior uma novidade estética na MPB, em todos os sentidos. O LP Alucinação, de 1976, verdadeira lufada de renovação e ousadia, colocou Belchior definitivamente sob os holofotes nacionais. Aquele disco, que reunia sucessos do quilate de Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, é, facilmente, um dos melhores surgidos em uma década de grandes trabalhos.
Tudo isso fala da carreira de Belchior, mas talvez a maior herança que tenha deixado seja a prova de que é possível unir o que sempre nos parece inconciliável. A força e a delicadeza, o lirismo e a combatividade, o simples e o refinado que não se intimidava a recorrer a grandes poetas, como Carlos Drummond de Andrade e Olavo Bilac. Nada melhor, para perceber isso, que viajar em sua obra.
“Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança, em breve, vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo
E que precisamos, todos, rejuvenescer”
Esse sentimento de deslocamento, de incompreensão com seu próprio tempo parecia nortear a obra de Belchior. Talvez sua maior virtude seja a maneira de dizer isso de formas inesperadas, surpreendentes. É como se o tempo todo gritasse a plenos pulmões: “Eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês”. E se seu desespero era moda em 76, fato é que suas angústias, mas recobertas com uma beleza desconcertante, nunca deixaram de moldar um repertório coerente, que jamais arredou um milímetro sequer de seus princípios temáticos e da alta qualidade.
Mesmo tratando de dramas de sua juventude, como a falta de liberdade, Belchior não deixou suas músicas ficarem datadas. Elas não mofaram. “Eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude, está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal” é uma daquelas porradas que só canções imperecíveis podem dar. É o caso de Como Os Nossos Pais, imortalizada na interpretação visceral de Elis Regina, e que traz, gravada profundamente, a marca de seu compositor.
Se por força deste destino, um tango argentino lhe ia muito melhor que um blues, isso se devia ao mergulho vertical que Belchior fazia questão de dar em suas próprias incertezas, em seus temores. “Eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão”, confessava. Esses sentimentos tão misteriosos e terríveis que eram encarados com um olhar muito intimista e ao mesmo tempo tão universal. Um rasgo tão completo, tão desabrido, tão sincero que chegava a doer. “Sonho e escrevo em letras grandes, de novo, pelos muros do País.” Um País cujas aflições esteve em sua perspectiva, num panorama formado por pessoas que “viviam o dia, não o Sol; a noite, não a Lua”.
“Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que caminha para a morte pensando em vencer na vida.
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que tem no fim da tarde a sensação da missão cumprida.”
Nos últimos dez anos, Belchior se retirou dos palcos, dos estúdios, da convivência com os amigos famosos. Não justificou sua atitude, não fez show de despedida, não quis conversar sobre o tema. Simplesmente saiu de cena, deixando que sua música falasse por ele. Mais que curiosidade, esta atitude deveria despertar respeito. Suas canções, de fato, revelam o que é preciso saber.
“Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida minha vida”