Da Cidade do Cabo (África do Sul) – A água é fria de matar. Não dá para entrar e dar umas braçadas no quase sempre revoltoso Oceano Atlântico, com suas ondas encrespadas e – avisam todos – um tanto quanto povoadas de tubarões brancos. Mas foram nessas ondas, compostas por correntes que se dividem na fronteira de dois oceanos – afinal, ali pertinho já é o Índico –, que o mundo foi desenhado. No extremo sul do continente africano, a história do planeta se fez por meio de um corredor que uniu, por outra via, o Ocidente com o Oriente.
Tudo isso é um ingrediente para entender uma cidade cuja história ajuda a explicar a trajetória de seu país, mas não compõe todo o quadro cultural que encontramos neste que é o segundo maior núcleo urbano da África do Sul, com mais de 3,5 milhões de habitantes. A colonização de Cape Town ou Cidade do Cabo formatou uma arquitetura que dá todo um charme ao passeio por seu porto, construído pelo império britânico e que parece uma cidadezinha de brinquedo. Prédios da antiga alfândega, das empresas de comércio, de hotéis se transformaram em um complexo turístico, com restaurantes, centros culturais e até um pequeno parque de diversões.
Bem-vindos ao Waterfront, onde se concentram milhares de turistas todos os dias, indo ao mercado de produtos típicos, ao aquário da cidade, aos piers de onde partem passeios de barco. É uma delícia ficar por ali, onde também foram construídos hotéis de luxo e um shopping de grande porte. Quem gosta de história também se sente em casa. Um prédio conta um pouco da vida do líder Nelson Mandela e uma praça foi dedicada aos quatro Prêmios Nobel da Paz que a África do Sul possui – além de Mandela, o bispo Desmond Tutu, o líder pacifista Albert Lutuli e o ex-presidente Frederick de Klerk, todos pela luta contra a segregação racial.
The Best is On The Table – O Waterfront é o ponto de maior atração, mas está longe de ser o mais interessante e o mais bonito. Tome fôlego e suba a serra. Melhor dizendo, vá até a montanha, sem dúvida o passeio mais inesquecível de Cape Town. Chame um Uber ou um táxi e, ladeira acima, chegue até a entrada da Table Mountain, que faz jus ao nome. A impressionante formação rochosa parece mesmo uma gigantesca mesa, que domina toda a paisagem e serviu por séculos como ponto de referência para capitães de navios de todo o mundo. Não é para menos. São mais de mil metros de altura. Foi em seu sopé que nasceu e se desenvolveu a cidade.
Depois de uma subida pra lá de íngreme, chegamos à bilheteria do teleférico que leva ao seu topo. É uma viagem curta, mas deslumbrante. Os bondinhos têm visão panorâmica e giram para que todos possam contemplar todos os ângulos. Meu Deus, e que ângulos se tem da cidade ali de cima! Passando bem pertinho dos penhascos, a gente vai subindo e descobrindo que o lugar é ainda mais bonito do que imaginamos quando estamos cá embaixo. As praias, os contornos do litoral, os prédios, tudo fica com mais cor, com mais magia se vistos lá em meio as nuvens. A ida à Table Mountain custa 255 rands (a moeda local), o que dá pouco mais de 60 reais e vale cada centavo.
O melhor horário para subir a montanha é no final do dia. É famoso Sunset (ou pôr-do-sol) da Table Mountain. O mar fica alaranjado e as cores, durante cerca de 15 minutos no final do dia, transformam-se em várias tonalidades. Antes disso, dá para passear pelo topo da montanha em uma rede de trilhas. Vá com um calçado de tracking, de preferência. Os caminhos são mais ou menos planos, mas também pedregosos e ninguém quer torcer o pé no melhor da visita a Cape Town. Não tenha pressa. Fique mais tempo, receba a brisa de frente, contemple essa maravilha da natureza, curta este tempo em que estamos, literalmente, mais pertinho do céu.
Comer, visitar e amar
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Gostaria de comer almôndegas de avestruz?
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Ah… Eh… É bom isso?
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Talvez então um bife de zebra?
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Como é o gosto da carne?…
Sim, na Cidade do Cabo não é tão improvável assim travar esse tipo de diálogo. Carne de cudu – uma espécie de cervo enorme que vaga pelas savanas –, um assado de javali, uma costelinha de búfalo. Todas essas iguarias estão disponíveis em alguns restaurantes específicos. E também um prato russo, um buffet oriental, um tempero indiano, um corte de carne australiano. Tudo acompanhado por um delicioso vinho. Cape Town é vizinha da principal região vinícola de todo o continente africano e sua posição geográfica favorece que influências gastronômicas cheguem de todo o mundo e convivam, e até mesmo se mesclem.
Muitos desses lugares em que vale a pena comer estão nas áreas sofisticadas da cidade, mas há outros com preços bem razoáveis na região de Sea Point e Green Point, uma vastidão à beira mar e onde também fica o Cape Town Stadium, que sediou jogos da Copa do Mundo de 2010. A parte central também oferece opções, perto das movimentadas Strand Street e Saint Georges Mall. O ritmo de vida, porém, não chega a ser frenético. Nem mesmo na enorme feira da Green Market Square, melhor lugar para comprar lembrancinhas e até alguns adereços mais interessantes. Ande a pé, descobrindo lojinhas típicas cheias de surpresas, cafés pequenos e convidativos.
O problema é que em quase toda Cape Town, de sua região central aos bairros mais badalados, as pessoas dormem cedo. Aliás, cedo demais! Mesmo nas zonas mais turísticas, como Sea Point, as ruas ficam desertas quando anoitece. Evite zanzar por ali à pé. Já por volta das 10 da noite, não é fácil encontrar uma alma vivente batendo perna à beira mar. Na frente dos restaurantes há movimento, mas também não até muito tarde. A vida noturna da África do Sul – e a Cidade do Cabo não é exceção – é breve. Brevíssima! Há shoppings que chegam a fechar às 8 da noite, acreditam? Por volta das 11 horas, todo mundo já pagou a conta e se mandou para suas casas. E nem adianta reclamar porque é assim.
O único lugar em que ainda há pessoas que não dormem com as galinhas é o Waterfront. Os notívagos sofrem, mas quem prefere aproveitar a viagem sob a luz do Sol, vai gostar. Pertinho do Centro fica o bairro malaio de Bo-Kaap e suas famosas casinhas coloridas. No pé de uma encosta, esse conjunto de poucas ruas atrai turistas pela singeleza e o conjunto singelo que formam. Esta é a parte onde se estabeleceu a maior comunidade islâmica da Cidade do Cabo. Os comércios vendem pães e bolos típicos e o atendimento é ótimo. Depois dê um pulo no The Company’s Garden, com seus palácios de governo, seus museus, suas alamedas bem cuidadas e suas árvores frondosas.
Marchas contra o apartheid foram realizadas nesta zona verde, uma delas puxada pelo bispo Desmond Tutu, que saiu da bela Catedral de Saint George. Aliás, este é um verbo bom de se conjugar quando se está em Cape Town. Marche, ande, siga sempre em frente. Inspire-se nesta cidade cheia de surpresas e história. Ainda que tudo tenha passado por transformações severas – e algumas maquiagens também –, a Cidade do Cabo continua a fornecer mais que uma vista linda, com o mar que a rodeia e as montanhas que a emolduram. Ela dá também um panorama único de um lugar onde o mundo, há muito tempo, costuma se encontrar.
As áreas exclusivas
Na África do Sul, as marcas do famigerado regime do apartheid, que relegava tratamento e direitos distintos entre brancos e negros, é o tempo todo lembrado. É preciso mesmo recordar para não esquecer tantas atrocidades, tanta barbárie e tanta selvageria. Esta vergonha para toda a humanidade passou por um doloroso processo de conciliação após a libertação do símbolo Nelson Mandela, que se esforçou por promover mais que a convivência, a união entre pessoas com cores de pele diferentes. Isso, porém, demanda tempo, gerações e mais gerações para se concluir ou apenas avançar.
A Cidade do Cabo, a grande metrópole do litoral sul africano, demonstra isso com incômoda evidência. Os endinheirados povoam seus condomínios de luxo, seus restaurantes exclusivos, suas praias urbanizadas e seguras. Mais do que em qualquer outra parte da África do Sul, os negros parecem ainda distantes de desfrutar dessas benesses. Em Cape Town, há regiões nobres, como as encostas de Sea Point, Clifton e Camps Bay. Nesses bairros, mansões suntuosas, construções com desenhos arrojados, residências exclusivas não faltam. Quase todas habitadas por brancos. Há uma divisão de classe visível, incontestável, definida pela cor da pele.
Os negros circulam nessas áreas, mas quase nunca dirigindo os carrões de luxo que os brancos guiam. Os negros estão nos pontos de ônibus, trabalhando como garçons nos restaurantes e bares, uniformizados como porteiros ou empregadas domésticas de patrões, certamente, de alto poder aquisitivo. Em outras partes da África do Sul, como Johannesburgo, a locomotiva econômica do país, ou Pretória, a capital administrativa, esse fenômeno não se repete com tal intensidade. Nessas outras cidades, há uma ascensão social dos sul-africanos negros e uma maior interação com pessoas de origens diversas. Isso não se dá na Cidade do Cabo.
Se tal realidade é triste, ela também é emblemática dos desafios que a nação ainda precisa encarar neste aspecto. É sua história de séculos de uma dominação absurda que determina tal situação. Não parece haver uma hostilidade ou uma delimitação de território clara como encontramos, por exemplo, em muitas cidades dos Estados Unidos – Washington, Baltimore e Los Angeles que o digam –, mas uma equivalência na situação financeira e nas oportunidades de vida é, por enquanto, uma utopia. Precisamos tirar disso também uma reflexão para nós, brasileiros. Será tão diferente aqui? Ir à África do Sul é, em todos os sentidos, uma experiência de vida e tanto.
Na história
Rumo às Índias, o navegador Bartolomeu Dias, em 1488, fez uma enorme curva à direita, a não muitos quilômetros de distância de Cape Town, contornando o Cabo da Boa Esperança. Em 1503, outro capitão, o português-castelhano António de Saldanha avistou uma enorme montanha de forma quadrada, um promontório rochoso, praias e ilhas próximas à costa. Fundeou em uma baía próxima, a Aguada de Saldanha, rebatizada para Baía da Mesa, colocando o lugar no mapa. E que lugar! De uma beleza única, aquele ponto pertinho do final da África tinha um futuro do qual não poderia escapar. Não se fica na esquina do mundo impunemente.
Em 1652, o holandês Jan van Riebeeck, representando a Companhia Holandesa das Índias Orientais, criou o núcleo daquela que seria uma das localidades mais estratégicas para as rotas comerciais durante séculos – antes da construção do Canal de Suez, no Egito, no século 19, quase todo o transporte marítimo entre a Ásia e a Europa precisava passar em seu arredores. O porto despertou o interesse imediato de outras potências, como a Inglaterra, que logo começou a cobiçar a região. Estava dada a largada para que os povos locais passassem a disputar espaço com europeus colonizadores. Com mais dinheiro e tecnologia, a competição foi desigual e, como quase sempre acontece nesses casos, de teor trágico em inumeráveis episódios.