Curadoria de Luís Araujo Pereira
[1]
Flor de la Mar
Trago dentro de mim a nau simbólica
Flor de la Mar: navegação do espírito
Nau Nação. Aquela que se fez para fora
e se perdeu para dentro. Sou essa Nau
Memória. Talvez perdida. Talvez esquecida.
Sou essa viagem de circum-navegação
à volta do Mundo e de mim mesmo.
Nau Ideia. Sem ela nós não somos nada
não mais que um bairro perdido a Ocidente
com ela se navega mesmo se parada
só com ela se pode chegar ainda
ao que dentro de nós é sempre ausente.
Nação que foi Europa antes de Europa o ser
Flor de la Mar: quatro sílabas com que se diz
o nome do poema
e do país.
̻ ̻ ̻ ̻
[2]
Cassandra e Troika
Então Cassandra apareceu na rua
trazia um cartaz para entregar à Troika
saúde educação dizia ela. E havia
em seu olhar a cólera e a beleza
ela era a filha de Príamo aquela
por quem Apolo se apaixonou
nos seus ouvidos passaram as serpentes
e por isso ela ouvia o que ninguém ouvia
tinha vindo para avisar que a Troika
é o novo cavalo falso dentro da cidade
os seguranças rodearam-na mas ela falava
seus longos cabelos soltos sob o sol de Lisboa
clamava por justiça e dignidade
ouvissem ou não ouvissem ela era a sibila
e apontava o cavalo dentro da cidade.
̻ ̻ ̻
[3]
Bairro Ocidental
Na Eurolândia tudo é permitido
bruxela-se um país berlina-se outro
um dia ao acordares estás eurodido
e o teu país efemizado é só um couto.
–
Um sítio à venda: Bairro Ocidental.
Não já o rosto com que Europa fita
mas a teta dos juros e do capital
com sol pròs velhos da Europa rica.
–
Não digas pátria: essa palavra está malvista
proibida pelo Império Orçamental.
Eurogrupado: tu e os maus da fita
filhos do Sul e do pecado original.
–
Lá vem a Nau Catrineta e o capitão-general.
–
Letra a letra outra Europa aqui foi escrita
canto a canto com sílabas de sal.
Desculpem se não estou de alma contrita
não sei ser europeu sem Portugal.
̻ ̻ ̻
[4]
Este rio
Este rio traz o mar cá dentro
e sendo mar não deixa de ser rio
este rio com margens que são centro
e sendo margens são nosso navio.
–
Este rio que volta quando parte
e quando parte leva as suas margens
este rio que vai a toda a parte
e mesmo em casa é todas as viagens.
–
Este rio que sabe a mar profundo
e dentro da cidade é rua e rio
e em cada rua dá a volta ao mundo
e de Lisboa fez nosso navio.
̻ ̻ ̻
[5]
Lenda dos cavalos brancos
Cavalos brancos me levaram
por ti por mim se perderam
e nunca te encontraram
e nunca me trouxeram.
–
Noite a noite galoparam
noite a noite me perdi
cavalos brancos me levaram
sem nunca sair de aqui.
–
Desertos lagos de sal
vales e montes atravessaram
ilhas azuis de coral
cavalos brancos me levaram.
–
Por sobre as águas passaram
sobre a espuma e a areia ardente
e nunca chegaram
ao país ausente.
–
Um era acaso outro vento
galoparam além de mim
cavalos brancos de dentro
com eles fui e não vim.
–
Sempre de mim para ti
nunca nunca te encontraram
noite a noite me perdi
cavalos brancos me levaram.
̻ ̻ ̻
Perfil
Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu em Águeda (sub-região de Aveiro) no dia 12 de maio de 1936. Estudou em Lisboa, no Porto e na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Integrou movimentos estudantis de oposição à ditadura de Salazar. Como ator, fez parte do Teatro Universitário de Coimbra. Convocado para o serviço militar, é mobilizado para Angola. Preso pela Pide, fica seis meses detido na Fortaleza de S. Paulo, em Luanda, onde começa a escrever Praça da Canção, o seu primeiro livro de poemas. Em outubro de 1964, torna-se membro do Comitê Nacional da Frente Patriótica de Libertação Nacional. Exila-se em Paris e, depois, em Argel. Nesta última capital, permanece dez anos e trabalha , como locutor, na emissora Voz da Liberdade. Após o 25 de Abril de 1974, retorna a Portugal, tornando-se dirigente do Partido Socialista. Em 1975, é eleito deputado à Assembleia Constituinte. Candidata-se, em 2006, à presidência da República. Sua intensa atividade política não pode ser dissociada de sua vasta produção literária. Entre o romance, o conto e o ensaio, destacou-se na poesia com mais de 10 títulos publicados, como os que seguem, todos com o selo da Publicações Dom Quixote: Praça da Canção (1965), O Canto e as Armas (1967), Atlântico (1981), Com que Pena ̶ Vinte Poemas para Camões (1992), Sonetos do Obscuro Quê (1992), Coimbra Nunca Vista (1995), 30 Anos de Poesia (1995), Senhora das Tempestades (1995), Livro do Português Errante (2001), Sete Sonetos e um Quarto (2005), Doze Naus (2007), Nambuangongo, meu Amor (2008), Poesia (2009, vols. I e II), Nada Está Escrito (2012), País de Abril (2014). Grosso modo, os seus poemas conciliam uma visão crítica da Europa (os problemas econômicos e sociais decorrentes da unificação) com um lirismo nem sempre contido. Além do Prêmio Camões de 2017, concedido em 8 de junho, recebeu ainda as seguintes distinções: Grande Prêmio de Poesia da APE-CTT, Prêmio Fernando Namora, Prêmio Pessoa, entre outros. Os poemas selecionados para a coluna Florações são do livro Bairro Ocidental (Dom Quixote, 2015).