Texto publicado no livro Caminhos da Reportagem,
de Rogério Borges, Deire Assis e Vinicius Jorge Sassine
Ariano Suassuna lembrava muito meus avós maternos. O escritor era paraibano de Taperoá. Vovó Raimunda e o Vovô Nelo eram cearenses, ela de Assaré, ele do Crato. Os três estão entre as pessoas que mais me encantaram até hoje. Em comum, o sotaque nordestino, que acho belíssimo. Em comum, o humor natural e preciso, que acho admirável. Em comum, um jeito melhor de encarar a vida e os problemas, que gostaria de ter herdado. Quando vi pela primeira vez Ariano Suassuna, assim, de pertinho, dona Raimunda já havia nos deixado – que imensa saudade – e vô Nelo já sentia o peso de muitos anos vividos. Talvez por isso me acorreram dois sentimentos simultâneos: identificação e cuidado. Ao vê-lo andar, com aquela fronte tipicamente nordestina, lembrei-me dos pais de minha mãe e o achei frágil. Seria desmentido depois. Em público.
Vi Ariano Suassuna em um evento talhado de celebridades, promovido pela TV Globo em São Paulo, no histórico Teatro Tuca, lugar de tantas lutas no período da ditadura militar. Aliás, nunca entrevistei tanta gente famosa em um único dia: atores, atrizes, cineastas, humoristas, jornalistas, apresentadores. Mas tanta gente que acompanhei nas novelas e telejornais globais perderam muito de sua aura quando emparelhados com Ariano Suassuna. O homem frágil. “Frágil não”, diria o escritor, dois meses depois, com o jornal com minha matéria em punho, quando esteve em Goiânia. Para uma platéia de duas mil pessoas – eu incluído, claro – Suassuna me sai com esta: “Há um jornalista aqui de Goiânia, de nome Rogério Borges, que me entrevistou em São Paulo há uns dois meses e escreveu que me achou frágil”. Nesta hora, já estava afundado até o pescoço na poltrona. Pensei que ele diria que meu texto estava impreciso, que havia feito besteira. Era o fim. Teria que mudar de profissão.
“Quando vi pela primeira vez Ariano Suassuna, assim, de pertinho, dona Raimunda já havia nos deixado – que imensa saudade – e vô Nelo já sentia o peso de muitos anos vividos. Talvez por isso me acorreram dois sentimentos simultâneos: identificação e cuidado.”
Suassuna, no entanto, continuou. “A gente nunca sabe o que as pessoas pensam de você. Logo eu que me achava um touro. Rapaz, eu não sou frágil não. Depois ele percebeu que eu não sou frágil, aliás, num belo texto.” Quem se afundava na poltrona agora já não cabia nela. Um frio percorreu minha espinha. Eu não acreditava no que ouvia. As pessoas que me conheciam começaram a olhar para mim. No final da palestra, tive que ir até o autor para conversar. Apresentei-me formalmente e ele, com um abraço forte que só um nordestino pode dar – também isso ele tem em comum com meus avós –, brincou: “mas rapaz, você é muito jovem. Quando eu li seu texto achei que fosse um velhinho que tinha escrito. E me aparece esta figura provecta!” Ele autografou minha matéria sob a condição de que eu levasse outro jornal para ele no hotel, no dia seguinte. Pretexto perfeito para mais um encontro. E no dia seguinte sentamos no hall do hotel, ele me apresentou dona Zélia, sua esposa, e conversamos, rimos, nos entendemos.
Não foi meu último encontro com Suassuna. Nos revemos algumas outras vezes. No Rio, na Bienal do Livro, sentei-me ao lado de dona Zélia e nós dois nos divertimos vendo o marido dela dançando com alunos em cima de um palco. Aqui em Goiânia, conversando com ele no hall do mesmo hotel, aparece a escritora Lya Luft, que eu havia entrevistado no dia anterior e que também estava na cidade. Ele me pediu algo impensável: “me apresente a ela.” Claro, seu Suassuna. “Lya Luft, este é Ariano Suassuna. Ariano Suassuna, esta é Lya Luft.” E fiquei eu entre o paraibano e a gaúcha, numa conversa que jamais poderia ter imaginado antes. Nesta minha função de cobrir literatura, área que não dá manchete, cujas matérias não ganham prêmios, que têm um número mais reduzido de leitores, que não têm tanto espaço quanto eu desejaria, há compensações. Conhecer melhor alguns autores é uma delas. Conhecer melhor Ariano Suassuna, receber seu carinho, ver em seus olhos a sinceridade de um elogio, foi a maior de todas.
“Nesta minha função de cobrir literatura, área que não dá manchete, cujas matérias não ganham prêmios, que têm um número mais reduzido de leitores, que não têm tanto espaço quanto eu desejaria, há compensações. Conhecer melhor alguns autores é uma delas. Conhecer melhor Ariano Suassuna, receber seu carinho, ver em seus olhos a sinceridade de um elogio, foi a maior de todas.”
Posso dizer que Ariano Suassuna marcou minha carreira. Não vou esquecer o que ele me proporcionou a partir de um texto que escrevi em exatos 50 minutos, em uma sala de imprensa montada às pressas, comendo um sanduíche McDonalds às três da tarde, com o jornal tendo que fechar às quatro e meia. Mas aquele texto tão espremido pelo tempo, redigido em uma situação tão complicada, tinha o que há de mais importante em qualquer trabalho com a palavra, jornalístico ou não: a inspiração. Ela não chega sempre, não é um artigo tão comum no mercado, não pode ser parida à força. Ela acontece, ela ocorre, ela aparece. Tinha segurança de começar um texto que devia ser transmitido de uma maneira mais arriscada. Mas Ariano Suassuna merecia um desafio assim. Corri todos os riscos por ele, pelo leitor, por mim.
Emoção! Como um encontro muda a vida de alguém!