Ali havia um bar onde tudo acontecia, sem os mínimos pudores, sem a certeza de outro dia, sem mais nem menos. Era um bar que não tinha nem a sordidez nem a elegância do Rick’s Café, o lugar das grandes conspirações, onde queríamos todos estar, para o melhor e o pior, para o que desse e viesse.
Bar e noites inesquecíveis, contudo.
Em algumas noites, era o bar que recebia todos aqueles que tinham afinidades e coragem — política, sexual, literária, musical etc. Era portanto o recinto mais alegre da cidade, aquela província que estava sob o domínio dos militares. Os que se julgavam normais e os que eram mesmo abilolados ocupavam mesas de mesmo tamanho, sob o olhar de informantes da polícia, escrotos que bebiam como se fossem pessoas decentes.
De vez em quando, uma ou outra cadeira voava, mas esse bafafá era previsível e estava na contabilidade. O tempo, porém, fechava só por um instante porque a tempestade estava em outro lugar. E a briga, quase sempre, era por causa da melhor ideia revolucionária, pela fantasia da sociedade que poderia ser criada.
Esse bar onde ocorriam as mais ruidosas discussões só existe na memória dos que o vivenciaram intensamente, todas as semanas, como monges devotados à sua cerveja trapista.
Era um bar que gostávamos de frequentar, não importava a noite — nenhuma noite ̶ , não importava a notícia boa ou ruim, a notícia que às vezes, vindo pesada, nos jogava para baixo.
Nós éramos jovens e não tínhamos medo porque éramos também incautos, ingênuos, generosos…
Por isso, a gente bebia pra caramba e olhava as mulheres bonitas cujas coxas estavam sempre de fora por causa da minissaia. E flertávamos com elas porque elas estavam ali para serem admiradas, e se as considerávamos gostosas era porque nenhum carnaval seria capaz de inventar colombinas mais deslumbrantes.
E ríamos e gargalhávamos e imprecávamos e falávamos alto, como se a alegria fosse necessária para esquecermos que, àquela hora, qualquer um de nós poderia estar naquele momento levando porradas num lugar ignoto da cidade.
Quem tinha sobrevivido ao inferno dizia que ele exalava o fedor da miséria humana. O Júnior escapou desse antro e se mandou, nunca mais, cabeça de bacalhau. Nós sabíamos que ele tinha cantado no pau de arara e redigiu um depoimento no qual descreveu a humilhação que sofrera. Depois, como um devoto, entoou o lamento de quem depositava a sua esperança no primeiro navegador alienígena, vindo não se sabe de qual quadrante do espaço.
Sim, lembro-me bem, ali havia um bar. E naquela época, em qualquer lugar da cidade funcionava uma casa de tortura que engolia gente dia e noite. A vida tinha um sentido absurdo porque o melhor mundo era inatingível e jamais uma companhia de soldados americanos viria a galope salvar os índios. Nem muito menos, para imaginar hipótese radical, uma junta interplanetária interviria para estancar os corações que sangravam.
Da ditadura, como se sabe, nada se leva, a não ser a marca dos tacões e a cicatriz que dilacera.
Era a época em que os militares e os seus civis associados dividiam o prazer de desfrutar o sangue humano — outro modo de dizer como esses pervertidos divertiam-se com as vilanias mais nefandas.
Foi nesse bar que reencontrei Mão de Flor, a colega nervosinha do colégio que batia nos meus colegas molengas. Ela era tão graciosa quanto uma bailarina tropeçando num depósito de pneus. Por mais que tentasse, nunca consegui tomar um chope com ela. Um dia, ela desapareceu para sempre, sangue heroico derramado em vão?
Foi nesse bar ainda que alguém numa noite menos ruidosa posou de leve a sua mão no meu ombro e disse-me, quase sussurrando, a voz melodiosa, quase colada aos meus ouvidos:
“A lua é muito pequena ̶ e a caminhada, perigosa.”
Quando me virei para encontrar a dona da voz, tive uma surpresa: era a Denise, a nossa amiga que voltava das profundas, depois de ter sido sequestrada, procurada e devolvida ao nosso convívio.
Entre tantas, aquela foi outra noite inesquecível, que dispensava poemas.
Sim, ali havia um bar — e uma geração alegre que lutava contra os seus desafetos.
Adorei a crônica do Luís. Sou fã de carteirinha do Luís.
Denso e profundo. Excelente, Luís!
Melancolia e ternura coisas que essa crónica excelente abraça com sua força de memória.