Do Rio de Janeiro – “Manuel Bandeira está deste lado aqui. Guimarães Rosa está deste outro lado aí.” O homem magro, de pele morena e voz mansa dá todas as coordenadas. “Aqui está o João Cabral e ali o Ferreira Gullar.” Com toda essa intimidade, vai indicando onde repousam os mais importantes escritores do País. “O senhor fique à vontade. É que eu tenho que cuidar da lápide do Roberto Campos.” E lá vai ele, andando devagar, averiguando um detalhe aqui e outro ali na ampla construção onde trabalha há nada menos que 23 anos.
Francisco Pinheiro tem 70 anos, 36 deles trabalhando entre os túmulos do Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. “Meu pai trabalhou aqui por muitos anos. Eu aprendi com ele esse serviço e com um italiano que mexia com mármores e que tinha uma loja aqui em frente. Fazia de tudo: limpava os túmulos, desenhava as lápides, colocava as datas, cuidava das sepulturas”, conta, com a despreocupação de quem já está no final do expediente tendo feito tudo o que precisava fazer no dia. “Mas em 1994, o imortal Josué Montelo, que era presidente da Academia, me chamou para ser funcionário deles, no mausoléu da ABL. Aí aceitei.”
Desde então Francisco cuida do nobre espaço, que ocupa toda uma seção da necrópole, em uma das partes mais altas do cemitério. É uma construção vetusta, quadradona, de janelas enfileiradas que deixam entrar a luz empoeirada do sol no grande salão onde estão as sepulturas e as gavetas com os restos mortais de integrantes e cônjuges da Academia Brasileira de Letras. Além de Rosa, Bandeira, João Cabral, Gullar, também estão sepultados nesse espaço autores como João Ubaldo Ribeiro, Adonias Filho, Dinah Silveira de Queiroz, Otto Lara Resende, Aurélio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Antonio Callado, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Hélio Pellegrino…
Na entrada do prédio, um rol especial marca o memorial ao fundador da ABL, Machado de Assis. “As letras todas não estão na sepultura porque caíram, mas estão guardadas aqui”, mostra Francisco. “Ele está aí com a Carolina. Diz que ela ajudou muito ele a escrever”, informa, falando do grande amor do Bruxo do Cosme Velho. Francisco sabe das coisas também porque se interessa. “Eu fico ouvindo os guias contando as histórias dos escritores”, revela. O mausoléu é aberto ao público apenas em alguns dias no ano. Fora dessas datas, o lugar só é frequentado por parentes dos autores, outros membros da ABL ou estudiosos que querem fazer uma visita.
“Eu fico aqui de segunda a sexta. Quando me avisam que vêm, eu espero a pessoa. Tem professores que vêm todo ano”, relata. É um trabalho solitário, não há outro funcionário a bater o ponto ali. A única companhia que o zelador tem é o de um pequeno cachorro que desceu de um morro próximo e foi ficando. “É o Nego. Ele está com a pata machucada. É mansinho”, garante. “Ele dorme aqui e me espera todos os dias. Quando chove, prefere entrar aí”, diverte-se, apontando o mausoléu. “Tem muita gente que preferiu não ficar aqui”, começa Francisco. Quem, algum funcionário? “Não. A Rachel de Queiroz, por exemplo, está ali mais embaixo”, aponta ele para uma outra ala do cemitério. “O doutor Roberto Marinho também quis ficar com a família, ali perto da entrada.”
Para Francisco, os mortos são presenças, nunca referidos no passado. “O Drummond está numa parte mais afastada. É lá em cima, já perto do morro. Ali é perigoso ir. Nem eu vou na parte da tarde. O pessoal pode ficar olhando lá de cima, monitorando. Já foi pior, agora está até melhor, mas não é bom arriscar não”, aconselha. “O José de Alencar está aqui pertinho. Bem aqui também está o Graciliano Ramos”, indica. E eles são seus escritores preferidos. “Gosto dos dois, mais do que do Machado de Assis”, confessa. Que o autor de Brás Cubas, o narrador defunto, bem aqui ao lado, não nos ouça. “Você gosta daquele Dom Casmurro? Eu comecei a ler, mas não terminei não.”
Trabalhando no São João Batista, Francisco, nascido não muito longe dali, no Humaitá, formou dois filhos. O rapaz se bacharelou em Direito e vai prestar concurso para o Ministério Público. A moça se tornou historiadora e encheu a casa dos pais de livros. Daí também vem sua desenvoltura ao falar de Euclides da Cunha, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, cujas sepulturas ele sabe de cor onde estão no emaranhado de túmulos deste cemitério fundado em 1852 por Dom Pedro II para sanear a cidade, cujas igrejas já não conseguiam abrigar mais tantas sepulturas. “O cemitério começou aqui onde a gente está”, contextualiza Francisco. “Tem túmulo aqui muito antigo.”
Por volta das 5 da tarde, Francisco dá uma última olhada nos túmulos de homens e mulheres que ajudaram a formar nossa cultura, gigantes da intelectualidade brasileira, enche a vasilha de água de Nego e passa o cadeado nas duas portas que protegem o mausoléu. E sai, agora andando um pouco mais rápido, pelos corredores estreitados por lápides de famosos e anônimos, naquele que é o cemitério com mais obras de arte a céu aberto do Brasil. “Não gosto de tirar foto não. Não gosto nem de dar entrevista, na verdade.” Ok, Francisco, sem fotos. Conto a ele que, como jornalista, entrevistei alguns dos escritores enterrados no panteão. “Pois é, estão todos aqui.” Há quase duas décadas e meia, zelados por Francisco.
Excelente! Tema interessante e escrito de forma gostosa de ler. Deu vontade de visitar. Parabéns!