De Paris – O ano de 1917 é um daqueles em que tudo aconteceu ao mesmo tempo. O mundo parecia estar em febre – talvez estivesse mesmo. Conflagrada pela Grande Guerra – como era conhecida a Primeira Guerra Mundial até eclodir a Segunda –, a Europa via seus impérios ruírem. E nessa implosão, havia uma intensa circulação de pessoas entre países, incluindo refugiados, artistas, exilados políticos. Tudo isso fazia com que determinados centros nervosos do continente ficassem ainda mais fervilhantes. Era o caso de Roma, cenário perfeito para o encontro entre um jovem e ardente artista espanhol e uma bela e diáfana bailarina russa.
Cem anos atrás, Pablo Picasso lançava seu olhar estético – e concupiscente – sobre a jovem Olga Khokhlova, que saíra da Rússia czarista e viu seu lar e o contato com a família se perderem com a Revolução Bolchevique. A arte do século 20 nunca mais seria a mesma. Aquele foi o momento crucial para o trabalho de um dos gênios das artes plásticas, que já pintava há dez anos, mas não havia sedimentado um caminho exuberantemente seu. Esse encontro está reconstituído em uma bela exposição no Museu Picasso, em Paris, totalmente reformado após cinco anos de um lento e minucioso processo de requalificação do espaço.
A mostra Olga Picasso, que ficará em cartaz até 21 de setembro de 2017, ocupa dois dos quatro andares do prédio e revela detalhes que nos fazem conhecer melhor o processo artístico de Picasso, que supera a classificação de suas fases (azul, rosa) e até a de escolas a que tenha pertencido (cubismo, surrealismo, classicismo). O que se vê no conjunto de quadros e algumas esculturas da exposição é uma musa inspiradora que delineou um artista que mudou seu estilos e suas formas no decorrer do tempo, mas que jamais se desvencilhou totalmente da figura daquela mulher de olhar calmo, mas que alcançava a alma.
Tudo começou quando Olga estava em Roma integrando a turnê de uma companhia de dança. A capital italiana era uma espécie de escala para outros palcos europeus, sobretudos os parisienses. E em Paris, o meio artístico abraçou a trupe e conseguiu para ela apresentações em alguns países da Europa. Nessa turma estava Picasso, ao lado de nomes como Jean Cocteau, Guillaume Apollinaire, Ígor Stravinski (outro expatriado russo), pessoas que, por circunstâncias de ocasião e afinidades estéticas, acabaram se aglomerando. Esse grupo permaneceu unido, trocando experiências, influenciando-se mutuamente, criando e sendo formados. Um contexto que fez do casamento de Picasso – que jamais chegou a se separar oficialmente de Olga – um período definidor.
As telas reunidas no Museu Picasso demonstram que houve uma inflexão na obra do pintor após Olga entrar em sua vida. Ele muda seu traço, abandonando mais radicalmente o impressionismo romântico de Renoir, pintor francês que tanto o influenciou na sua juventude, ainda que este continuasse a inspirá-lo em certa medida. Seus contornos e cores ficam mais próprios, originais, mais fortes e menos semelhantes a seus mestres. Além disso, inclui-se uma carga infinitamente maior de erotismo em sua pintura, já efetivamente delineado no famoso quadro Les Demoiselles d’Avignon. Após Olga, porém, o nu ganha espaço, as subversões das formas se materializam em mensagens e incógnitas mais instigantes. Há algo novo no ar.
A figura feminina que Picasso pintaria a partir dali também ganharia sua estrutura básica tendo Olga como modelo. E ela é explorada em todos os ângulos. O marido a pintou em situações triviais e em poses ousadas. A chegada do filho do casal, Paul, em 1921, intensificou essas mudanças na pintura de Picasso. Ele promove o retorno de seu olhar para a Antiguidade e o Renascimento, calibrando cores, utilizando o jogo de luzes com mais segurança em suas telas, aprimorando a inserção da figura humana em cenários nem sempre muito nítidos, mas não mais ausentes.
Nesta época, Picasso, Olga e o filho Paul passam uma temporada nas proximidades do belo castelo de Fontainebleau – o preferido de Napoleão Bonaparte –, aproveitando sua luz e sua natureza para reciclar conceitos e reformular perspectivas. A decomposição das formas, já experimentada sob a inspiração de Paul Cézanne, ganha outras conotações, com mais liberdade e menos convencionalismo. Também foi a partir de sua união com Olga que Picasso passa a tatear com mais afinco os terrenos da mitologia, acrescentando arquétipos e representações como o Minotauro, e investindo em caminhos ligado a Eros.
A exposição demonstra que Olga, de forma nítida ou por metáforas, passou a ser figura onipresente na obra de Picasso, mesmo depois da separação do casal. Em 1927, o pintor passou a se relacionar com Marie-Thérèse Walter. A amante e depois companheira jamais foi tão preponderante em seu imaginário quanto a dançarina russa que lhe deu seu primeiro filho. Poderia haver uma mescla entre as duas nas figuras femininas que pintava, mas Olga nunca estava longe. Havia uma verdadeira idealização, que Picasso jamais negou. Telas como O Beijo e Pintor e Modelo expressam essa fascinação que não foi extinta, mesmo depois das mágoas que a descoberta de sua traição deixaram.
Antes de Olga, Picasso viveu com Fernande Olivier. Depois dela e de Marie-Thérèse ele ainda teve outras musas: Dora Maar, Françoise Gilot e Jacqueline Roque. Profícuo, todas ganharam quadros, homenagens, declarações de amor por meio da arte. Nenhuma, porém, foi tão fundamental como Olga, que morreu bem antes do pintor, em 1955. Nesta época, o filho ainda era um vínculo entre os dois. A mostra no Museu Picasso revela a força de tal ligação. Vídeos revelam a felicidade doméstica e a adoração do pai pelo menino. Nas muitas décadas em que produziu, mesmo em sua fase final, chamada de “último Picasso”, já próximo de sua morte, em 1973, aquela mulher que nunca perdeu a beleza se colocava nas entrelinhas. Olga Picasso tinha os olhos que seu antigo companheiro nunca deixou de pintar.
Um baú de guardados
Depois da morte de Olga Picasso, em 1955, seu filho Paul abriu uma velho móvel, um baú antigo que continha as reminiscências de sua mãe. Mais do que meros guardados, havia nas fotos e na correspondência encontradas uma verdadeira genealogia de uma das mais intensas inspirações de Pablo Picasso. O encontro de ambos é registrado em escritos, memórias, em objetos. Sapatilhas de dança, joias de família e, sobretudo, cartas trocadas revelam uma mulher que viveu períodos de forte melancolia, mas também uma pessoa dona de enorme determinação.
Depois que saiu da Rússia, Olga jamais voltou a ver um membro de sua família. Após anos sem saber ao certo o que os comunistas haviam feito com eles depois da Revolução de 1917, Olga conseguiu refazer contato por cartas. Nelas, sua mãe Lydia e sua irmã Nina revelavam situações dramáticas. Perseguidos e empobrecidos, seus familiares passavam fome e outras necessidades. Isso a oprimiu enormemente e alguns quadros de Picasso retratam esses momentos difíceis da esposa. Ajudados pelo casal, os parentes russos de Olga conseguiram ter uma vida mais confortável, mas sua família jamais conheceu seu filho Paul, por exemplo.