Escrita em 1843, a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, é uma obra-prima do Romantismo brasileiro e, para dizer o essencial, por causa de seu tema, de seu ritmo e de sua melopeia, uma realização de alto grau estético, que só engrandece a língua portuguesa. Os clássicos, como escreveu Italo Calvino, são clássicos pela capacidade que eles têm de nos encantar.
Muito mais do que enaltecer e valorizar a pátria, da qual estava distante e para a qual nunca mais voltaria em vida, Gonçalves Dias, dando forma ao seu compromisso literário, construiu uma representação particular de nacionalismo que imprimiu na poesia brasileira, para sempre, os signos do sabiá, das palmeiras e do lamento, que só a saudade de uma alma que está distante e enlanguescida provoca.
Por ter se tornado cânone, o poema sofreu ao longo do tempo uma série de imitações, com acréscimos, reduções, ampliações… Como tal, esse poema é modelo de texto escolar. De algum modo, quando menos se espera, nós voltamos a ele, retomando-o para pensar de algum modo o presente.
Esse talvez seja o destino dos clássicos: ter reproduzido o seu sentido à exaustão, de acordo com as contingências dos autores que o reescreveram e, até hoje, bem ou mal, ainda o reescrevem.
Da mesma forma que o lemos procurando o sentido que o gerou, eu suponho que o poema de Gonçalves Dias também construiu em nossa mentalidade uma sutileza que poucos percebem: a ideia de não-lugar (aquele que não conseguimos definir com clareza) − uma metáfora, enfim, daquilo que se busca, do que está ausente, do que não tem forma, portanto, de uma imagem simbólica.
Não importa onde ocorra, o exílio tem muitos significados, entre os quais a nostalgia pela terra natal distante; entre os quais a memória de uma festa plena de amigos e o beijo de uma mulher de olhos faiscantes; entre os quais um balão vermelho que se despreende e sobe, tendo o azul ao fundo como cenário de sua lenta viagem em direção ao Nada…
De todas as paródias do poema de Gonçalves Dias, eu não prefiro aquelas consagradas pelas antologias escolares, que incluem versões de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Cacaso, entre outros − eu prefiro uma canção triste (mais triste ainda na voz de Paula Morelenbaum), a ponto de uma angústia intrometer-se, sem aviso, na escuta.
Essa canção, que me arrasta à melancolia, é Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Composta em 1968, ganhou o 3º FIC da TV Globo e uma sonoríssima vaia.
Pela delicadeza de sua melodia, evoca uma música de câmara. Nela estão implícitas as intuições da tragédia que aquele ano anunciava, cujos versos “deitar à sombra/ de uma palmeira que já não há/ colher a flor que já não há” revelam cegueira e fracasso, abandono e destruição.
Na letra, o enunciado “uma sabiá” provoca estranheza gramatical, cujo propósito talvez seja o de ressaltar o absurdo que muitos viveriam a partir daquele ano: o exílio, as prisões arbitrárias, a violência política, o pau de arara, as intimidações, a censura, o estado de exceção…
Ao citar Gonçalves Dias, Chico Buarque atualizou o poema, dando-lhe sentidos inesperados, mas que − e por isso mesmo − procuram traduzir aquele momento histórico em que foi escrito.
Embora não vivamos mais sob os tacões dos milicos, há milhares de brasileiros que são obrigados a procurar outros países num exílio voluntário, cuja justificativa principal é de ordem econômica. Em muitos exemplos, esses brasileiros são humilhados nos desertos mexicanos ou algemados em fronteiras inóspitas ou expulsos sem justificativa de países da União Europeia.
Outros brasileiros, diante do fato de empresários, parlamentares e magistrados serem denunciados, dia após dia, em escândalos de corrupção, têm o alento de também abandonar o país, seja pelo descrédito no futuro, seja pela perversão a que estão sujeitos − e, talvez, pela vergonha de sua identidade.
Tanto num caso como no outro, há ainda o desprezo pela nossa sui generis república, onde tantos têm volúpia pelo dinheiro e apego doentio pelo poder. Onde poucos são os bons cidadãos. Onde a revolta não tem armas. Onde a esperteza dos vigaristas triunfa.
Talvez seja a hora de perguntar, numa curiosidade tola: qual poeta desses rudes tempos vai, longe da pátria e saudoso de seus enigmas, escrever outra canção de exílio, tão notável quanto a de Gonçalves Dias e que inclua outros sentidos, como o de ser bezerro numa terra de coronéis?
Veja abaixo vídeo em que Tom Jobim interpreta Sabiá, de autoria dele e de Chico Buarque:
Adorei
Adorei Luís. Obrigada.