“Se você tem uma ideia incrível / É melhor fazer uma canção / Está provado que só é possível / Filosofar em alemão.” O conselho de Caetano Veloso na canção Língua (Velô, 1984) não é sem propósito. Ao menos nos últimos séculos, os alemães vêm protagonizando grande parte das discussões filosóficas, deixando para nós uma herança de teorias complexas, palavras intraduzíveis e nomes impronunciáveis − não necessariamente nessa ordem dos adjetivos. Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) é um deles. De sua biografia salta aos olhos a vida errante e a crise de loucura que o condenou a viver os últimos 11 anos em estado semivegetativo.
Nietzsche daria um filme. Daria não, deu. Até onde conheço, três. O mais antigo, um filme italiano de 1977 dirigido por Liliana Cavani leva o título homônimo da obra de Nietzsche Al di là del Bene e del Male (Além do Bem e do Mal). O mais conhecido levou para a telona o romance do escritor e psiquiatra norte americano Irwin Yalon, Quando Nietzsche Chorou (2007). O mais brasileiro, Dias de Nietzsche em Turim (2001), do diretor carioca Júlio Bressane, narra os últimos anos de sanidade de Nietzsche na Itália e traz o ator Júlio Eiras num bigode de dar inveja ao próprio filósofo. Assista, você vai gostar.
Já os livros, filmes, músicas etc. que fazem referências ou se inspiraram em sua vida e obra são incontáveis. Em 2011, o cineasta húngaro Béla Tarr trouxe a público os planos longos de seu Cavalo de Turim. Entre nós, o curta-metragem Meu Amigo Nietzsche (2012), de Fáuston da Silva, retrata a vida semianalfabeta de um menino que encontra a obra capital de Nietzsche Assim Falou Zaratustra num lixão da periferia do Distrito Federal. Se tivesse encontrado algum dos volumes da turma do Sitio do Pica-pau Amarelo, Nietzsche também não faltaria. Monteiro Lobato, profundo admirador de Nietzsche, lhe dá voz em inúmeros momentos, como nesta cena da boneca Emília:
Dona Benta estava examinando o galo da testa da negra, quando ouviu umas batidinhas na porta. Mandou que Narizinho abrisse. Eram as jabuticabas. Dona Benta – disseram elas muito zangadinhas − viemos queixar-nos da peça que a Emília nos pregou. Imagine que nos transferiu dos nossos galhos na mamãe-jabuticabeira para um pé de abóbora – uns talos molengões que andam pelo chão. E ficamos presas ali, encostadas à terra, a nos sujar de pó e ciscos. Ora, isso é um despropósito, porque somos frutas de galho e não do chão, como certos porcalhões que conhecemos. (A Rãzinha cochichou para a Emília: “Isso deve ser indireta para os morangos”.)
– Vocês tem razão, jabuticabinhas – disse Dona Benta – e vou repô-las todas no lugar certo. Impossível admitir que umas criaturinhas delicadas como vocês andem pelo chão. Chão é bom só para abóbora.
E voltando-se para Emília: – Vá já desfazer o que fez! ordenou rispidamente.
Emília fez beicinho e disse para a Rã: “Ela era democrática quando saiu daqui. Depois que lidou com os ditadores da Europa, voltou totalitária e cheia de ‘vás’. Pois eu não vou” – e não foi!
(LOBATO, Monteiro. A Reforma da Natureza. São Paulo, Globo, 2006, p. 43)
Mas por que Nietzsche desperta tanto interesse? Vou responder como se soubesse. Os jovens estudantes parecem se seduzir pelo potencial retórico de algumas de suas afirmações. “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”, brada o homem louco no aforismo 125 de A Gaia Ciência. “Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura”, diz Zaratustra na seção Do Ler e Escrever. “Eu não sou um homem, sou dinamite”, assina o próprio Nietzsche em sua obra autobiográfica Ecce Homo (cujo titulo ironicamente repete as palavras de Pôncio Pilatos ao apresentar Cristo aos judeus).
O público mais erudito parece gostar de seus insights, do caráter hibrido de seus textos, das cutucadas nos autores clássicos, da profusão de temas, personagens, estilos, paisagens literárias. Os Nietzsches dionisíaco, existencialista, precursor da psicanálise etc. surgem daí. Entre os especialistas, o trabalho cada vez mais minucioso e profundo divide tendências e floresce num sem-número de obras em todo o mundo. E viva a diversidade! Estuda-se Nietzsche atualmente em todo o planeta; se podemos confiar na internet, este é o título da Genealogia da Moral escrito em japonês: 道徳の系譜.
Nietzsche também vende. Vende muito. Se você tiver alguma dúvida quanto a isso, basta digitar o nome dele (atenção à ordem do z-s-c) em um sítio de vendas como a Amazon.com para encontrá-lo atualmente relacionado a mais de 18 mil produtos dentre livros, CDs, acessórios para automóveis, jogos, roupas para bebês e bonecos de pelúcia (e pensar que um de seus livros, Humano Demasiado Humano, vendeu no primeiro ano de sua publicação míseros 120 exemplares, de uma tiragem de mil). De acordo com o empresário Fábio Bueno Lopes Netto, da empresa 24×7, idealizador das curiosas máquinas (do tipo das máquinas de refrigerante), que vendem livros de R$ 2 a R$ 20 nas estações de metrô de São Paulo: “Nietzsche vende igual a pão quente”.
A propósito, Nietzsche gostava de pão e também de presunto, frutas e o que mais favorecesse a sua digestão complicada pelos problemas de estômago e intestino. As dores de cabeça eram terríveis. A cegueira, para lá de parcial, muitas vezes o obrigou a ser ouvinte dos livros que lia e falante dos livros que escrevia. Se você nunca ouviu Nietzsche, experimente um dos aforismos de A Gaia Ciência ou as máximas e flechas de Crepúsculo dos Ídolos. Nietzsche também compunha, mas ouvir as suas canções exigiria um pouco mais de paciência.
A partir dos 30 anos, a vida de Nietzsche é marcada por uma sucessão de dietas e pela busca constante por lugares e climas que lhe causassem mais conforto ou simplesmente menos dor. O norte dos alemães “bebedores de cerveja” era frio demais. O sul dos antigos filósofos do meridiano, muito quente. O norte da Itália e a Suíça tornavam-se diante disso a sua Pasárgada. Durante dez anos, Nietzsche lecionou filologia clássica, sua formação universitária, na Universidade da Basileia (Suíça), que depois lhe concedeu uma aposentadoria por invalidez.
Muito embora algumas de suas frases e obras (como O Anticristo) possam sugerir uma personalidade agressiva e intransigente, os melhores biógrafos, como C. P. Janz (cujos volumes foram traduzidos recentemente para o português pela Editora Vozes), retratam uma pessoa serena, demasiado cortês, que fazia e recebia visitas, que gostava de improvisar ao piano e que caminhava diariamente longas horas pondo a conversa em dia preferencialmente com os amigos mais diletos, geralmente do sexo feminino.
Sua condição de “andarilho”, aliás, é uma história à parte. A verdade é que a situação civil de Nietzsche ficou indefinida depois que ele deixou a Alemanha em 1869, aos 25 anos, para lecionar na Suíça. Como se diz em alemão, Kurz gesagt (em suma), Nietzsche se tornou um apátrida e encarnou tão bem esse papel que escreveu uma obra intitulada O Andarilho e sua Sombra. Nietzsche parecia gostar do não-lugar. Da nuance. Da entrelinha. Muito embora suas obras seduzam pela suposta facilidade de leitura (se comparadas ao fatídico Ser e Tempo de um Heidegger, por exemplo), ele mesmo adverte no prefácio de Humano Demasiado Humano que elas são como “laços e redes para pássaros incautos”, verdadeiras armadilhas para confundir os seus leitores. E as leitoras também.
Experimente explicar um de seus aforismos para alguém e você compreenderá o que ele quis dizer ao escrever: “Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. De forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo incompreensível: talvez isto estivesse justamente na intenção do autor” (A Gaia Ciência, § 381). Nietzsche quebra com isso uma regra básica do mundo dos livros, escritores e leitores. Você até pode escolher uma de suas obras nas máquinas de refrigerante do metrô, no saguão do aeroporto ou ser um pouco mais cauteloso e adquirir uma boa tradução como a de Paulo César de Souza, da Editora Cia. das Letras, que citamos aqui. Ainda assim, foi ele quem o selecionou dentre tantos outros leitores. Isto se você for capaz de ler devagar, de ler de novo, reler, ler ao cubo, ao quádruplo… É você leitor, que de alguma forma, é escolhido por Nietzsche. É fisgado pelo seu anzol.
E se você permaneceu até aqui, gostaria de convidá-lo para participar do II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, que será realizado em Goiânia nos dias 4, 5 e 6 de setembro de 2017, no prédio da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás. Um monte de gente boa já confirmou presença e estará por lá. Especialistas, estudantes, curiosos. Serão todos muito bem-vindos.
Em tempo, dedico este pequeno texto ao meu professor de literatura inglesa dos idos da graduação, Renato Alessandro dos Santos (do blog Tertúlia), que desde sempre diz para eu escrever algo “não acadêmico” sobre Nietzsche.
O II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, que será realizado de 4 a 6 de setembro na Faculdade de Filosofia da UFG, tem como tema a obra Humano Demasiado Humano (1878), na qual o filósofo pela primeira vez se volta para a periferia do seu próprio pensamento. O evento trará estudiosos renomados do pensamento de Nietzsche como Ângelo Marinucci (Pisa/UFPEL), Oswaldo Giacoia Jr. (Unicamp), Marta Faustino (IFIL Nova – Lisboa), Gianfranco Ferraro (Salento/Itália e École Pratique des Hautes Études/França), Antônio Edmilson Paschoal (UFPR), Ernani Chaves (UFPA), Roberto Barros (UFPA) e Bruno Machado (UFS). Mais informações: https://www.filosofia.ufg.br/n/98545-ii-coloquio-internacional-nietzsche-no-cerrado.
Que texto bom! Por mais textos assim, com personagens (?) incríveis como esse. Obrigado!
richard, oi. parabéns por seu texto. fiquei feliz por ter lembrado de mim ao final dele. obrigado mesmo. acho que se saiu muito bem escrevendo sem as normas da abnt. ficou ótimo assim. gostei demais disto também: “Mas por que Nietzsche desperta tanto interesse? Vou responder como se soubesse.” risos. é claro que você sabe, rapaz. aliás, não conheço ninguém que conheça melhor nietzsche do que você (não conheço pessoalmente o giacoia). parabéns, rapaz. parabéns mesmo. ficou ótimo seu texto. abração.
renato