(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Meio-dia
Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.
̻ ̻ ̻
[2]
Cidade
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
̻ ̻ ̻
[3]
Noite de Abril
Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.
Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.
Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.
̻ ̻ ̻
[4]
Assassinato de Simonetta Vespucci
Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse ̶ de repente.
Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exactas do destino.
Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.
Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.
E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
̻ ̻ ̻
[5]
Praia
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Perfil
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu na cidade do Porto, em 6/11/1919, e morreu em Lisboa, em 2/07/2004. É autora de extensa obra literária que inclui diversos gêneros: poesia, ficção, teatro e traduções de Homero, Eurípedes, Dante, Shakespeare e Claudel. Sua produção poética compreende os seguintes livros: Poesia (1946), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O Nome das Coisas (1977), Navegações (1983), Ilhas (1989), Obra Poética I (1990), Obra Poética II (1991), Obra Poética III (1991), Musa (1994), Signo (1994), O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997). Manuel Gusmão, em prefácio a Coral, observa que a “tópica do mar é sem dúvida uma das primeiras e mais poderosas figuras que magnetiza” a sua linguagem. Ao lado desse poderoso motivo temático, a vida urbana, o tempo, a religião, entre outros, são também temas marcantes que orientam a sua visão poética. Após o 25 de Abril, foi eleita para a Assembleia Constituinte. Ganhou os prêmios Camões (1999) e Rainha Sofia (2003). Em 2014, por decisão da Assembleia da República, seus restos mortais foram trasladados para o Panteão. Na literatura portuguesa, é uma das vozes poéticas mais importantes do século 20. Os poemas selecionados foram extraídos dos livros Poesia e Coral.
Confira a seguir o documentário Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal, 1969), dirigido por Joao César Monteiro: