Mira Jama era um famoso contador de histórias do Oriente, cuja fama se estendia por diversas tribos árabes. Em um trágico dia, porém, por razões que permaneceram obscuras, esse homem teve o nariz e as orelhas decepados. Pobre Mira Jama… O pior era que, junto com os membros cortados, também fora amputado o seu poder de seduzir as pessoas com as palavras. A perda desse poder ocorrera nem tanto pela sua aparência agora repulsiva, mas porque essa terrível provação havia feito com que Mira Jama se tornasse, dali em diante, imune ao medo.
Como despertar o temor nos outros, quando já não mais lembramos como é experimentar esse sentimento? Quando o mundo perde o seu encanto, sua capacidade de nos maravilhar e também de nos assombrar, já não há mais lugar para a imaginação.
Esse infeliz ex-narrador de histórias, um dos inúmeros personagens do livro Sete Narrativas Góticas, viu-se destituído do seu dom porque viveu tão intensamente, ainda que de uma forma pavorosamente dolorosa, que o mundo perdeu para ele o seu mistério. “Quando sabemos como são de fato as coisas, já não mais conseguimos fazer poemas a respeito delas”, lamentava-se. Da autora dos admiráveis contos reunidos nesse livro, a dinamarquesa Karen Blixen (1885-1963), também se pode dizer, usando suas palavras, que ela teve, como Mira Jama, uma “excessiva familiaridade” com a vida. Uma daquelas existências que, costumamos dizer, empalidecem as ficções mais aventurosas.
Casada com um barão sueco, Karen Blixen, também conhecida pelo pseudônimo de Isak Dinesen, deixou o conforto e o luxo em que vivia na Europa, em 1914, para se submeter a um arriscado empreendimento na África. Durante 17 anos, ela comandou, praticamente sozinha, uma fazenda de café no Quênia e somente retornou de lá para a Dinamarca, contra a sua vontade, porque foi à falência.
O casamento com o nobre Bror Blixen durou pouco tempo – dessa união só lhe restou a sífilis transmitida pelo marido, que arruinou-lhe a saúde para o resto dos seus anos. Em contrapartida, foi na África que Karen conheceu a sua grande paixão: o inglês Denys Finch-Hatton, alguém que, como ela, se autoexilara no continente africano, fugindo das convenções da sociedade europeia, e que morreu prematuramente em um acidente de avião.
A experiência de Karen na África é narrada em seu livro Out of Africa (traduzido no Brasil com o título de A Fazenda Africana), adaptado por Sidney Pollack para o cinema no filme Entre Dois Amores, com Meryl Streep no papel da escritora e Robert Redford como seu amante inglês (outra obra da autora transposta para a tela é A Festa de Babette). Mas voltando ao ponto inicial deste texto, a questão é que Karen Blixen, diferentemente do seu personagem Mira Jama, embora tenha vivido também de forma tão intensa, nunca deixou de se maravilhar com o universo à sua volta e, portanto, sempre conservou intacto o seu incrível poder de narrar.
Uma habilidade que ela só foi exercitar na linguagem escrita, é verdade, depois que, amargurada e falida, teve de voltar à monotonia da terra natal e se lançar ao ofício de escritora, “para ganhar a vida”. Porém, os empregados da sua fazenda africana e os amigos que a visitavam já conheciam muito bem essa faceta de exímia contadora de histórias, quando se sentavam em torno dela para ouvir suas extraordinárias narrativas.
É esse poder imaginativo de Karen Blixen que mostra toda sua força em Sete Narrativas Góticas. Primeiro livro da autora, essa coletânea de histórias causou reações díspares quando chegou ao público, em 1934. Ao lado dos que se encantaram com o vigor criativo daquela desconhecida escritora dinamarquesa, não faltou quem chamasse sua literatura de “alienada”, de um esteticismo oco, descolado do mundo real.
Contudo, embora fosse fato que aquilo que Blixen oferecia aos leitores, em sua prosa elegante e elaborada, eram histórias povoadas por príncipes, piratas, damas da nobreza, aristocratas que se batem em duelos e mortos que voltam do além, seria uma tremenda incompreensão dessa obra de estreia dizer que ela é apenas uma tentativa démodée de reeditar no século 20 um estilo pertencente ao 19.
Como bem nota o crítico literário Per John no posfácio da edição de Sete Narrativas Góticas lançada há alguns anos no Brasil pela Editora Cosac Naify, esses textos assinados por Karen Blixen são algo único e incatalogável. Os tipos criados pela autora podem ser apresentar com as vestes da época da Revolução Francesa ou do império napoleônico, ou ainda como se tivessem saído dos contos de fadas, mas as suas angústias e aflições são contemporâneas, na medida em que questões envolvendo a passagem do tempo, a solidão, o amor, a própria existência nunca deixam de ser formuladas pelos seres humanos.
Tal qual uma Scheherazade dos tempos modernos, Blixen conduz essas sete narrativas entremeando as histórias umas às outras, em um clima de estranheza e mistério. Em um dos seus contos, ela faz um dos seus personagens dizer que “Deus aprecia uma brincadeira”, como se o mundo fosse, na verdade, um grande parque de diversões para o deleite do Criador. A essa observação, a filósofa Hannah Arendt, em um brilhante ensaio sobre Karen Blixen incluído em Homens em Tempos Sombrios, apresenta o melancólico complemento: “E as brincadeiras divinas, como muito bem sabiam os gregos, costumam ser frequentemente cruéis”.
Nesses contos cheios de fantasia e peripécias, Blixen não só exibe um talento narrativo de uma virtuose da escrita, mas revela uma fina capacidade de compreensão da condição humana, naquilo que ela carrega de trágico e patético.