Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp, Oswaldo Giacoia Jr. é uma das maiores autoridades no Brasil sobre a obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, autor de livros como Nietzsche & Para Além de Bem e Mal (2002), Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade (2005) e Nietzsche x Kant (2012). Doutor em Filosofia pela Freie Universität de Berlim, Giacoia foi um dos destaques da programação do II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, realizado na Faculdade de Filosofia da UFG, de 4 a 6 de setembro últimos, e que nesta edição teve como foco Humano, Demasiado Humano, o segundo livro de Nietzsche, publicado em 1878, com uma série de aforismos que constituem um verdadeiro desafio para seus leitores e intérpretes. Na manhã da quarta-feira, dia 6, antes de proferir a conferência de encerramento do evento, intitulada Sobre a Liberdade da Vontade em Humano, Demasiado Humano, Giacoia conversou com a reportagem de ERMIRA. Confira a conversa a seguir:
Nietzsche escreve Humano, Demasiado Humano em um momento que marca a sua ruptura com o romantismo do compositor Richard Wagner e com a filosofia de Schopenhauer e a sua moral da compaixão. O que representa essa obra na trajetória intelectual de Nietzsche?
Essa obra representa muito na trajetória intelectual de Nietzsche porque marca justamente o momento em que ele revê as posições que tinha assumido nesse momento inicial da sua vida e que eram posições profundamente marcadas pelo Romantismo, pela adesão ao programa de reforma cultural que estava na base da reforma feita por Wagner do teatro alemão, essa ideia de uma recuperação da função não somente artística, mas também política e cultural do teatro. E por sua aproximação da filosofia de Schopenhauer, como um ponto de ruptura com a hegemonia da corrente idealista em filosofia que tinha naquele momento uma ascendência muito grande na Alemanha, a tradição que vinha de Kant, passando por Hegel, por Schiller, Fichte, etc., e que era dominante na filosofia universitária, no cenário cultural alemão. Ao afastar-se desses pontos de ancoragem do seu pensamento, Nietzsche realmente inicia uma trajetória bastante original e própria, e Humano, Demasiado Humano é a primeira expressão pública desse afastamento sob a forma de livro, o que torna claro que Nietzsche desloca os pontos de apoio da sua filosofia. Não que ele passe a desconsiderar a importância da arte, sobretudo da música, mas a rever a relação entre arte e ciência. E se aproxima muito mais dos autores iluministas, próximos do Esclarecimento, caso de Voltaire, de Descartes, marcando uma distância crítica em relação a suas fontes iniciais.
Poderíamos dizer, então, que essa obra lança as bases do que seria a sua filosofia?
É um pouco exagerado dizer isso porque muita coisa da filosofia madura de Nietzsche já está presente no Nascimento da Tragédia, que é a sua obra inicial. O que se pode dizer é que Nietzsche se aproxima bastante do modo de pensar da ciência, dos métodos da ciência, tanto das ciências da natureza quanto das ciências formais. Nietzsche passa a integrar no seu modo próprio de pensamento o debate científico da época, no plano da matemática, da física, da biologia, da história, da sociologia, da antropologia. Então, a ciência passa a adquirir um peso muito importante nesse momento. Posição que Nietzsche vai reconsiderar a partir da Gaia Ciência.
Há essa aproximação da ciência, mas uma aproximação que também é crítica da ciência, não é mesmo?
Sem dúvida, é crítica da ciência. Será menos do que os textos que serão publicados a partir da Gaia Ciência. Mas, de qualquer forma, é uma posição que atribui um peso, um valor muito mais elevado à ciência e ao método científico, caso particularmente das ciências da natureza e da história, do que era o caso do primeiro Nietzsche. Eu acho que aqui há uma questão que pode mostrar com muita clareza o novo cenário, mas também os impasses do novo cenário. Humano, Demasiado Humano vai se ocupar, entre outras questões, da questão da compatibilidade entre a liberdade e o determinismo. Isso que coloca em jogo o problema da liberdade da vontade, do livre-arbítrio, é um dos elementos medulares de Humano, Demasiado Humano, e é aí que nós vamos perceber a profundidade do envolvimento de Nietzsche com o debate científico de seu tempo.
E como se articula essa ideia da liberdade com a vontade nessa obra de Nietzsche?
Nietzsche tem diante dos olhos um contexto de determinismo, o debate científico no qual ele se encontra empenhado é um debate sobre o determinismo, isto já está presente em Schopenhauer. A dificuldade toda é se o plano do agir humano, a práxis humana está submetida também a uma conexão causal de feitio determinista. Se todas as nossas ações são consequências necessárias de determinadas causas, não há como sustentar a responsabilidade do agente, a responsabilidade moral do agente pelas suas ações. Portanto, exclui algo assim como o livre-arbítrio, ou exclui uma concepção de liberdade definida como livre-arbítrio, na medida em que seria incompatível a perspectiva do determinismo com a perspectiva do livre-arbítrio. Humano, Demasiado Humano trabalha fortemente nessa direção. Isso acarreta para Nietzsche uma série de dificuldades, que ele tenta resolver de diferentes maneiras. Mas só aprofundando e levando ao seu último limite as dificuldades que aparecem em Humano… é que Nietzsche começa a divisar uma possibilidade de compatibilizar liberdade, não entendida como livre-arbítrio, mas liberdade e determinismo. Para isso, ele precisa reconstruir uma noção de liberdade como livre necessidade, diferente do livre-arbítrio, que está muito mais próxima de Spinoza do que qualquer outra fonte que Nietzsche tenha frequentado até então.
O senhor poderia falar um pouco mais sobre essa liberdade como livre necessidade? Não parece haver um paradoxo nessa relação entre liberdade e necessidade?
Sim, há um paradoxo, um paradoxo produtivo, fecundo. Qual é o problema da livre necessidade? É que você precisa considerar as ações humanas não como se elas formassem uma espécie de reino dentro da natureza, como se elas fossem uma exceção absoluta dentro da natureza, mas considerar o homem inteiramente inserido no contexto do cosmos, no contexto do mundo, não só do ponto de vista da sua história pessoal, mas da sua história social, da sua história cultural e, sobretudo, no limite, do universo inteiro. E esta imensa correlação de forças, que inclui a natureza e a história, é nela que o homem se insere e dela ele não pode se subtrair.
É esta a parte da necessidade…
É esta a parte da necessidade. É nesse conglomerado de forças que o homem está. Inserindo-se nele, a cada instante, a cada tomada de decisão, nós temos, configurados nesse enorme campo de forças, pontos de bifurcação, ou descortinamentos de novas possibilidades que se dão em cada pessoa singularmente. Cada um de nós não pode ser amputado da totalidade, mas cada um de nós é um ponto onde esse imenso conjunto de forças pode seguir em uma ou outra direção.
E é aí que vai se dar essa articulação da liberdade com a necessidade?
Exatamente. Em cada ação da sua vida, ela é uma espécie de consequência necessária de todo o passado que veio até ali. Mas é impossível para qualquer ciência montar uma equação que determinasse exatamente qual vai ser a direção que essa totalidade vai tomar dali para frente. Se eu e cada um de nós somos os pontos de deslizamento, os pontos de ruptura onde esse todo vai poder caminhar em uma direção ou em outra, é impossível, do ponto de vista do desenvolvimento da ciência até agora, determinar de uma maneira unívoca, de uma maneira rigorosamente determinista, qual a direção que ele vai tomar, se é direita, se é esquerda, se é para cima, ou para baixo. Isso vai depender exatamente de você, em cada momento da sua vida. Por isso, é uma necessidade livre, porque ela está determinada aqui a partir da enorme massa, do conjunto de relações de forças que vieram do passado do mundo até você, mas, daqui para a frente, desse momento em diante, é em você, com você, que se decide como o processo se encaminha agora, na direção A, B, C, D ou F. Sua ação justifica o passado da história toda, como se a história tivesse caminhado até você e ela tivesse tido o efeito de produzir exatamente esse momento, mas é você que vai decidir – e isso é obviamente um experimento mental – na sua ação que direção essa força magnífica vai tomar. É isso que Nietzsche chama de “eterno retorno”, quer dizer, cada instante de decisão se configurar de tal maneira que você, na sua decisão, pudesse querer que ele retornasse eternamente.
Na sua crítica que faz à tradição filosófica e a sua associação da liberdade com a vontade, Hannah Arendt inclui Nietzsche, pelo fato de ele desvincular a liberdade da ação política. O senhor considera que essa crítica aponta realmente uma limitação no pensamento de Nietzsche?
Eu escrevi um texto uma vez, fazendo uma aproximação entre Nietzsche e Arendt exatamente a esse respeito. Do ponto de vista como Arendt pensa a política, efetivamente Nietzsche não se enquadra aí. Mas se nós deixarmos de lado alguns elementos e nos centrarmos em um elemento do pensamento de Arendt, absolutamente fundamental, inclusive para o seu entendimento da política, que é a questão do novo começo, acho que se pode encontrar um ponto de aproximação bastante importante.
Quando ela pensa a liberdade como espontaneidade.
Isso. No caso da Arendt, ela está pensando o agir comum no espaço público, e essa perspectiva é efetivamente diferente de Nietzsche. Não se trata para Nietzsche de um agir comum no espaço público, mas de um agir que é um novo começo, no sentido arendtiano do termo. Nesse caso, eu acho que é uma afirmação da liberdade que produtivamente poderia ser aproximada dessa ideia de um novo começo. Nesse momento é como se o agir de cada um de nós inaugurasse de novo uma nova possibilidade. Um novo começo mesmo.
Nós falamos da articulação entre vontade e liberdade, mas Nietzsche discorre também sobre a vontade de poder. Como essa relação entre vontade e poder ocorre na obra dele?
Seria interessante pensar isso também de um ponto de vista polêmico porque nunca há em Nietzsche a afirmação de uma tese dogmática. Sempre Nietzsche coloca suas próprias posições em confronto, em relação de tensão com outras posições. Então, a noção de vontade de poder precisa ser pensada um pouco a partir da noção de vontade de vida em Schopenhauer. O conceito fundamental em Schopenhauer é o conceito de vontade. E o conceito de vontade é sinônimo do conceito de vontade de vida, vontade é vontade de vida. Nietzsche vai dizer: não existe uma vontade de vida, quando você tem vontade, você já tem vida.
A vida já é vontade…
A vida já é vontade. Não se pode ter vontade do morto. Não tem sentido falar em vontade de vida. Schopenhauer faz no fundo uma redundância. O que existe de predicado, de atributo, que possa ser ligado à vontade, que possa mostrar qual é o cerne, a essência da vontade, não é vida, porque vida e vontade se identificam, e sim mais vida. Isso é poder. Não existe vontade de vida, existe vontade de mais vida. Mais é poder.
Então seria um poder como uma potência?
Uma intensificação da vida. Mesmo potência é uma palavra, para dizer o mínimo, equívoca, porque ela remete a uma certa concepção de poder que ainda está prisioneira do esquema, da diferenciação aristotélica entre o ato e a potência, a dynamis e a energeia, a dynamis e a entelechia, na verdade. Nietzsche está além disso. Vontade de poder não significa que o poder seja algo externo à vontade, que ele é algo que a vontade almeja ou um objeto ao qual a vontade se dirige. Poder é a vontade mesma na sua essência. Então, liberdade significa, para Nietzsche, uma intensificação da vontade de poder. Na liberdade, a vontade de poder experimenta uma acumulação da sua força. A liberdade significa o sentimento de poder elevado a um patamar superior a um grau anteriormente alcançado. No sentimento de liberdade, você se sente como aquele que é ou se considera livre, se torna muito mais ativo que passivo, mais espontâneo que dependente, portanto, o seu sentimento de poder se incrementa. A liberdade é índice de incremento de poder.
Nietzsche foi um grande crítico dos valores morais e culturais do Ocidente. Que referenciais a sua obra nos oferece para pensar o mundo contemporâneo?
É uma contribuição de uma atualidade extraordinária porque nós vivemos hoje um cenário que, de certa maneira, está antecipado na filosofia de Nietzsche. Qual é esse cenário? O esvaziamento dos valores que até então serviram de orientação, de norte, para o nosso agir, para as nossas formas de avaliação, nossas formas de julgamento. Esses valores, tanto no plano cognitivo quanto no plano ético e político, acabaram por se esvaziar de sentido e, portanto, perderam sua força vinculante, de servir como referências válidas de orientação. Este é um cenário de crise. A tendência que nós temos nesse cenário de crise é nos apegar a esses valores sobrevividos como se eles ainda pudessem cumprir essa função de orientar o nosso agir. Ora, Nietzsche dissipa essa ilusão, isso não é possível. E nos coloca frente a frente, face a face com uma exigência muito forte para nós, a necessidade de tomarmos consciência disso e tentar recuperar, criar novas perspectivas de sentido que não sejam apenas a nostalgia daquilo que nós já perdemos.
A entrevista com o professor Oswaldo Giacoia Jr. é a primeira de uma série de três conversas com importantes estudiosos da obra de Nietzsche no Brasil, gravadas durante o II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, realizado de 4 a 6 de setembro na Faculdade de Filosofia da UFG, que ERMIRA publica a partir desta segunda-feira, dia 11 de setembro. As próximas entrevistas a ser publicadas são com os professores Ernani Chaves, da Universidade Federal do Pará, e Antônio Edmilson Paschoal, da Universidade Federal do Paraná.
Confira abaixo o vídeo da conferência Sobre a Liberdade da Vontade em Humano, Demasiado Humano, que o professor Oswaldo Giacoia Jr. proferiu no encerramento do II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, no dia 6 de setembro, na UFG.
Parabéns Rosângela pela excelente entrevista!