“Ganho dinheiro cantando as minhas desgraças”, confessou Cazuza em uma de suas composições, logo após revelar que estava com aids, em 1989. Na mesma composição, ele revelou seus medos, entre eles, o de “fazer análise e perder a inspiração”. É que a criação sempre esteve associada ao sofrimento, e a psicanálise teorizou sobre a angústia como fonte do artista.
“O artista deve sofrer/o sofrimento cria as melhores obras/o sofrimento traz transformação”, escreveu a sérvia Marina Abramovic, artista da performance, em seu Manifesto sobre a Vida do Artista, para em seguida afirmar: “O artista nunca deve estar deprimido/A depressão é uma doença e deve ser curada/A depressão não é produtiva para os artistas”. Em outras palavras, o sofrimento é inevitável, faz parte da vida, e o artista pode usá-lo para criar; já a depressão, não, esta é uma doença.
“A poesia e a escrita fazem das mortes da minha vida algo que nasce”, diz a psiquiatra e psicanalista Valéria Ávilla, autora do romance Ciranda de Mosaicos, e que acaba de lançar Psicanálise à Língua do P – Palavra, Pensamento, Poesia e Prosa. As perdas que sofremos em nossa vida são inevitáveis, mas elas podem ser ressignificadas, afirma a psiquiatra, que usa da escrita tanto em seu próprio benefício como também para falar da psicanálise e de como ela pode ajudar as pessoas nesse processo de autotransformação para lidar com assuntos caros em nosso dia a dia, como o amor, a relação com o outro, a morte e o luto.
Confira na entrevista abaixo.
Ao reunir psicanálise e literatura, você desafia uma escrita freudiana de que a psicanálise pode interromper o fluxo de criatividade, que é a angústia, como admite em seu livro Psicanálise à Língua do P. Com o livro, você quer mostrar que isso é um mito?
Com certeza é a angústia que nos leva por algum tempo a procurar e se manter em análise. Inicialmente é o combustível desse processo, assim como é fonte de motivação e inspiração para um escritor, mas acontece que não é apenas dela que continuamos e criamos. No início, Freud achava que, caso tratássemos os artistas, os apagaríamos. Porém, nos seus últimos tempos, entende que o sintoma não pode ser de todo extinto. Relata que, num final de análise, chegamos ao rochedo intransponível e que não há uma cura final. Lacan conseguiu perceber posteriormente que o sintoma era exatamente o que diferencia um sujeito do outro e, se ele é intransponível, podemos usá-lo a nosso favor. A arte vem do sintoma e não somente da angústia. Sendo assim, não discordo de Freud, mas Lacan veio para esclarecer isso melhor.
“Na verdade, é a psicanálise que faz o sujeito se utilizar da poesia para se resgatar e não morrer de angústia.”
A minha impressão foi de que você se utiliza da poesia e da prosa para destacar o papel da psicanálise no processo de resgate do ser humano. Foi isso?
Na verdade, é a psicanálise que faz o sujeito se utilizar da poesia para se resgatar e não morrer de angústia. Penso que o psicanalista pode usar de qualquer instrumento que seja a favor do analisando. Pode ser uma interpretação teatral no momento certo, pode ser um abraço ou a poesia. Não a uso em todas as sessões diretamente, mas na verdade vejo cada sessão como um drama poético. Poesia é o que fiz com o meu sintoma.
Cazuza cantou: “Eu vou pagar a conta do analista/ Pra nunca mais ter que saber quem eu sou/ Ah! Saber quem eu sou…” Por que temos esse medo?
Bem, se você sabe quem é, terá que conviver e fazer algo com isso. As pessoas têm medo de descobrir que são ruins, mas é um engano. A psicanálise desvenda você para que faça algo muito bom e que seja feliz com seu jeito de ser, seja de que modo for. Como diz Gama, uma pessoa muito querida: “As pessoas não mudam, as pessoas melhoram.” O incrível é que Gama nunca precisou fazer análise para entender isso.
“Quando nos apaixonamos, estamos nos vendo refletidos no outro. Como se o outro fosse um espelho. Paixão não é amor, é se confundir com o outro.”
Nas poesias sobre o amor, um tema recorrente foi a ideia de que a pessoa deve se amar antes de amar o outro, e sobre o equívoco de a pessoa se colocar na mão do outro. Queria que você explicasse isso melhor.
Em verdade, não há como amar o outro sem se amar antes. Quando nos apaixonamos, estamos nos vendo refletidos no outro. Como se o outro fosse um espelho. Paixão não é amor, é se confundir com o outro.
Neste sentido, não existe o amor romântico como o concebemos?
Não, o amor romântico é um se misturar no outro, um se perder no outro, por isso sempre termina em tragédia. Entendo o amor não como um sentimento que é forte no início e depois vai se apagando. O amor é algo que vai crescendo cada vez mais à medida que dois sujeitos permitem e incentivam o crescimento do outro. Não perdoamos quem nos impede de crescer e desejar.
“Não a angústia, mas sim o desejo que está intrinsecamente conectado ao sintoma, é o combustível da criação, é a energia atômica! Se nos guiamos por ele, os obstáculos serão desafios e não empecilhos. Se nos guiamos pelo dever, estaremos sempre arrastando correntes.”
Ao poetizar sobre escolhas (um tema muito recorrente na psicanálise), você afirma: “Bom apostador é aquele que escolhe pelo desejo”. Como assim?
Não a angústia, mas sim o desejo que está intrinsecamente conectado ao sintoma, é o combustível da criação, é a energia atômica! Se nos guiamos por ele, os obstáculos serão desafios e não empecilhos. Se nos guiamos pelo dever, estaremos sempre arrastando correntes.
Uma de suas poesias chama-se “Ódio, filho único da paixão”. Ódio e paixão não são sentimentos independentes um do outro?
Não tão independentes. O ódio é o que imediatamente nasce de um apaixonado quando o espelho (o outro) faz algo diferente dele, do que ele havia planejado.
Uma de suas maiores abordagens no livro (em prosa e poesia) é sobre a morte e o luto. Sinal de nossa dificuldade em lidar com o tema ou de que é necessário?
Freud fala das questões que angustiam o ser humano. É o único ser que sabe que irá morrer. E, para sermos bem sinceros, a maioria das pessoas, num luto patológico, tem mais pena de si de ter perdido a pessoa, do que da pessoa que perdeu a vida. Anderson Silva [lutador de UFC], numa entrevista, declarou: “O mais difícil não é treinar para ganhar, é treinar para saber perder. Quem não sabe perder não vai aprender a ganhar.”
“A lembrança do outro é a única forma desse que foi continuar vivo. Continuar vivo dentro de você. Se as lembranças forem boas e trouxerem aconchego, sentindo aquele como se fosse uma presença, o luto está ressignificado.”
O que é o luto e como um enlutado pode ressignificar a perda e a dor de uma morte?
A lembrança do outro é a única forma desse que foi continuar vivo. Continuar vivo dentro de você. Se as lembranças forem boas e trouxerem aconchego, sentindo aquele como se fosse uma presença, o luto está ressignificado. A poesia e a escrita fazem das mortes da minha vida algo que nasce.