(Tradução de Luís Araujo Pereira)
De Paris ̶ A mise en scène de Carmem, de Bizet, realizada por Calixto Bieito, retorna depois de 18 anos. Neste 2 de julho de 2017, na Ópera de Paris, essa obra conserva todo o seu impacto. No momento em que a cortina se levanta, a cabine telefônica, postada à esquerda, pode parecer inadequada. Mas quando os camaradas de trabalho de Carmem surgem ̶ e nesse instante nós a procuramos ̶ , subitamente ela aparece dentro da cabine, como em uma prisão cercada por soldados. O mesmo acontece quando uma Mercedes irrompe em cena acompanhada de outros automóveis: e, de repente, um acampamento de ciganos forma-se no palco.
A caracterização de Carmem é de tal acuidade que chega a flertar com o gosto duvidoso, tal como a música de Bizet, que soa popular, embora respeitando a técnica estrita da aria da capo. É por essa razão que esta obra, enamorada tanto do prestígio da ópera tradicional quanto da intrusão da voz do povo, acasala os dois com tal sutileza que parece esconder a competência da escritura. Sem demora, essa escritura fascinou Nietzsche, que, por causa dela, teria dado em troca todo Parsifal, de Wagner. Por conseguinte, a obra tornou-se universalmente popular, tendo entre os seus aficionados os mestres da batuta, como Klemperer e Karajan.
A “flor” que Carmem dá a D. José, na montagem de Bieito, é verdadeiramente “odor di femina”. Acima de tudo, Carmem é livre, tanto quanto o seu destino de cigana a autoriza. Ela ama a vida ̶ e não a morte.
Neste 2 de julho, tendo encarnado essa visão, Anita Rachvelishvili doou o melhor de si na pele de Carmem, pois é uma grande artista. A fortiori, Bryan Himel foi um D. José convincente, apesar de não ter a presença vocal de um Gedda, de um Domingo, de um Alagna. Entretanto, a encenação, restituindo a violência maniqueísta interior de um homem para o qual uma mulher ora é “anjo”, ora é “demônio”, permitiu-lhe recuperar plenamente um papel em cujo heroísmo vocal tantos intérpretes sucumbiram. Em contrapartida, o toureiro Escamillo, que Idar Abdrazakov representa, não teve aparentemente a luminosidade vocal que lhe é peculiar. Geralmente ̶ este é sempre o caso ̶ , visto tratar-se de um papel difícil e que exige um Ernest Blanc ou um José van Dam para encarnar a bravura vocal da personagem. E, depois, a plateia está presente diante de uma soldadesca que faz do abuso dos direitos a sua razão de ser.
Agora, a cortina se levanta para mostrar a imagem de um dos touros visíveis nas estradas da Espanha, em uma projeção de vídeo publicitário sobre bebida alcoólica, causando um efeito que não é de fato excepcional. Esse touro designa a arena, sem dúvida, e designa também a tragédia e a morte. Todavia, ele é desmontado judiciosamente, porque Bieito opera com o simbólico, e não com o literalismo, muito menos com o ápice da nulidade da arte da mise en scène: na ausência de uma ideia sobre a obra, substituí-la por um cenário e, depois, pensar como colocar em cena esse cenário. Uma vez o touro desmontado, sobra a arena do face a face. Desse modo, é perfeitamente restituída a tragédia no coração do cotidiano, a hora da escolha, a liberdade em vez da servidão: Carmem brilha pela última vez entre as pompas sonoras e efêmeras da festa.
No mesmo mês de julho, o festival de Aix-en-Provence apresentou uma Carmem com mise en scène de Dmitri Tcherniakov. Nesse caso, nós encontramos todas as facilidades demagógicas da gabolice pós-moderna. O diretor sente-se autorizado (ele não o é) a inventar a história de um psiquiatra que trata de um certo José por meio da montagem da história de Carmem, que se desenrola em um hospital psiquiátrico. Este tratamento a obra recusa ̶ e chega-se ao ponto de o coro das crianças desaparecer para dar lugar, na cena, a adultos que fazem play-back, reproduzindo as vozes infantis! Do mesmo modo, o libreto é reescrito criando contrassensos ridículos: um exemplo é o momento em que Escamillo é salvo por Carmem ̶ de acordo com a montagem de Therniakov, ele torna-se o vencedor de D. José. Nessa cenografia, o povo desaparece, assim como desaparece a violência entre os grupos sociais. Carmem não é mais uma cigana, mas sim uma pequeno-burguesa que recolhe os honorários cobrados pelo psiquiatra.
Nada mais fácil do que brincar de histriônico com uma obra célebre. Contudo, o que transparece da abordagem de Tcherniakov pode ser resumida da seguinte forma: desprezo pelo povo e misoginia. A música, não obstante, salva o espetáculo pela condução intensa de Pablo Heras-Casado, mais inventivo, é bom dizê-lo, que Mark Elder, muito elegante, na Ópera de Paris.
Eis a moral da história: quando não se tem nada a dizer sobre uma obra, é preferível deixá-la quieta. No entanto, quando se compreende os seus meandros mais íntimos ̶ e este é o caso de Bieito ̶ , então as liberdades assumidas são como promessas de um interesse renovado por uma obra-prima: vivat Carmem!
Confira abaixo o trailer da montagem de Carmem, de Calixto Bieito, apresentada na Ópera de Paris nesta temporada de 2017:
Veja no vídeo abaixo um trecho da montagem de Carmem, na montagem de Dmitri Tcherniakov: