Por Rosângela Chaves e Valbene Bezerra
Elegantemente vestido com um conjunto de blazer e calça pretos, um pequeno bottom com o retrato de Andy Warhol na lapela, camiseta rosa e tênis vermelho, o artista plástico Juliano Moraes, 45 anos, recebe a reportagem de ERMIRA no alto da rampa de acesso ao Museu de Arte Contemporânea, no Centro Cultural Oscar Niemeyer. É uma tarde de sábado deste mês de setembro de muito calor, mas não a ponto de inibir o movimento de pessoas no local, de diversas faixas etárias, algumas crianças dentre elas, que chegam para admirar as obras que compõem a exposição Contrarquitetura, coletânea de desenhos, esculturas e instalações que ficará em cartaz até o dia 20 de outubro no local. A mostra representa o retorno de Juliano ao circuito de exposições de Goiânia, do qual estava afastado há alguns anos.
O impacto da mostra já se faz presente logo na entrada do museu. Duas grandes esculturas em madeira e diversas instalações ocupam todo o andar inferior, fazendo um jogo de horizontalidades e verticalidades que remetem ao título da exposição. Com alto nível técnico e muita inventividade, a mostra é digna de figurar nos grandes salões de artes do país. Utilizando cobre, cerâmica, madeira, papel, carvão vegetal e outros materiais, Juliano – que também é professor da Faculdade de Artes Visuais (FAV) da UFG − criou peças independentes que formam um conjunto harmônico e são o resultado de sua intensa reflexão sobre a ocupação dos espaços e as paisagens urbanas.
Contrarquitetura foi concebida especialmente para o Museu de Arte Contemporânea, tanto que o processo de execução de algumas peças ocorreu no próprio local, como se o MAC houvesse se transformado em um imenso ateliê do artista. Juliano conta que sua intenção foi propor um jogo metafórico com o museu, que ele considera uma obra de arte independente, “uma escultura do Oscar Niemeyer”. A beleza e a estranheza dos objetos à mostra também criam a impressão de um lugar idílico, fantástico, que Juliano associa à ideia de um “sertão mítico”. Para ele, a exposição “tem tudo a ver com o céu de Goiás, esse infinito que enche os nossos olhos”.
Na parte superior do museu, desenhos em papel recobrem as paredes. O artista apropriou-se de fragmentos de materiais variados para criar uma gama de desenhos em diferentes formatos, em pequenas e grandes dimensões e em cores sóbrias. Juliano revela que o desenho, para ele, é uma espécie de meditação. “É um processo demorado. Ao mesmo tempo em que vou construindo, vou destruindo também. Um desenho pode levar até meses para ser resolvido”, afirma, acrescentando que, no seu caso, o desenho é que define o material que será usado na criação das suas peças.
Maturidade
Acima de tudo, a mostra Contraarquitetura representa a maturidade artística de Juliano Moraes, um nome que despontou no cenário das artes em Goiás, no final da década de 1980, quando era um adolescente. Ele diz que nunca pensou em ser um artista. Descobriu-se artista. Na infância, queria ser astrofísico. Mas desde que se entende por gente sempre gostou de desenhar, uma aptidão que, de certa forma, carrega uma herança familiar, tendo em vista que vários membros da sua família tinham uma certa habilidade manual. O pai, o maranhense Antônio Carlos, já falecido, era artesão e vendia os brincos e colares que confeccionava na Feira Hippie. Um tio, irmão da sua mãe, trabalhava como ourives e o avô materno fazia acabamentos em gesso.
Juliano teve a chance de desenvolver seu talento nas aulas no Centro Livre de Artes, onde foi matriculado aos 10 anos pela mãe, a jornalista Ilza Silveira. Dessa época, recorda-se das “aulas maravilhosas” com a professora Ivone Lara, com quem teve a oportunidade de explorar várias técnicas, como pastel, giz de cera, desenhos de observação. “Era um laboratório de criatividade fabuloso.”
Saiu da escola aos 17 anos, já participando de exposições e também do movimento de jovens artistas como ele, entre os quais Marcelo Solá, que se opunha à tradição dos nomes já consagrados da cena artística goiana e ligados à Casa Grande Galeria de Arte, dirigida pela marchande Célia Câmara. A Casa Grande apostava em nomes como Siron Franco, Antônio Poteiro, DJ Oliveira, Cleber Gouvêa, Omar Souto, Gilvan Cabral, entre outros. “Formávamos a moçada rebelde que era contra a Casa Grande. Abaixo a Casa Grande!”, brinca Juliano.
Essa “moçada rebelde”, além de Juliano e Solá, era formada por Gilmar Camilo (curador e atual diretor do Museu de Arte Contemporânea de Goiás), Divino Sobral (curador e artista plástico), e ainda por nomes como Vladimir Saflate (professor de Filosofia da USP e escritor), Edson Lenine (pesquisador de filosofia), Jader Pinto (músico), entre outros. Edney Antunes e Nonatto, que experimentavam a linguagem da arte urbana, como o grafite, e Pitágoras eram outros jovens artistas com ideias e perspectivas afinadas com o grupo de Juliano e Solá.
Juliano nega que essa geração tenha representado um movimento ou alguma espécie de “vanguarda” na arte goiana. O que a unia era a decisão de romper com a tradição expressionista e paisagística que ainda vigorava no cenário oficial das artes em Goiás. “Nosso negócio era a arte pop, o minimalismo, as instalações, a videoarte”, narra. Os lugares de encontro eram as exposições do Itaú Cultural, os bares da cidade, onde Juliano e os amigos reuniam-se para discutir as tendências da arte contemporânea, das quais eles se mantinham informados pelas páginas da Ilustrada da Folha de S. Paulo – referência nacional dos moderninhos à época– e da revista inglesa The Face.
Também gostavam de ler sobre teoria da arte e os livros de filosofia de Nietzsche. Quando sobrava “um troquinho”, iam de ônibus para São Paulo para ver exposições de arte ou participar de oficinas. Aos 16 anos, Juliano já expunha suas obras nas coletivas “underground” em espaços alternativos de Goiânia. Mas o reconhecimento oficial do seu talento não tardaria: aos 18 anos, recebeu o prêmio de primeiro lugar na 2ª Bienal de Goiás. Em seguida, conquistaria outros importantes prêmios das artes em Goiás, como o Salão de Artes Flamboyant e o Salão de Artes da Celg, todos infelizmente extintos. A partir dessa época, expôs com regularidade seu trabalho, em mostras individuais e coletivas, em várias cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte.
Ciências Sociais
Juliano Moraes formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás. “Fiz o curso por curiosidade, pelo conhecimento e pela visão de modernidade que proporciona e que vai muito além da arte.” Nunca teve a pretensão de ser sociólogo, mas aprendeu nos anos da graduação a ter disciplina e rigor nas suas leituras. À época, o curso de Artes da UFG se orientava muito ainda pela linha das “belas-artes”, justamente a tradição à qual Juliano e seu grupo se opunham. “Na nossa condição de rebeldia, eu não tinha interesse. Outros dos meus amigos preferiram Filosofia ou seguiram outros caminhos. [Marcelo]Solá e [Divino] Sobral fugiram da universidade”, recorda-se.
Tendo cursado depois o mestrado em Poéticas Visuais pela Universidade de Brasília, Juliano voltou para a UFG como professor da Faculdade de Artes Visuais há sete anos. Diferentemente do que ocorria quando despontou no cenário artístico em Goiânia, ele afirma que hoje a academia se tornou o lugar mais arejado para discutir e produzir arte contemporânea. “Os artistas que trabalham com experimentação de linguagem, sem muita inserção no mercado tradicional, foram para a academia para criar circuitos paralelos”, observa. E é justamente da FAV que Juliano afirma estar saindo, atualmente, uma nova geração que tem despontado no cenário artístico não só local, mas nacional.
Além das aulas na FAV, Juliano trabalha em seu ateliê, uma sala alugada de 40 metros quadrados situada na Rua 9, no Centro de Goiânia. E lá também que ele guarda o seu grande acervo, já que − confessa − a sua arte não é muito fácil de ser comercializada.
O artista lamenta o fato de Goiânia contar atualmente com tão poucas galerias e museus de arte e atribui a essa carência, que de resto não é exclusiva da cidade, mas de todo o país, o distanciamento e a incompreensão do público com relação à arte contemporânea. Nesse sentido, faz uma comparação: “Quando você vê os comentaristas de futebol falando que o jeito de jogar de um jogador lembra o estilo do ‘Zacarias do antigo Ponte Preta’, isso é muita abstração. Lembrar o jeito de jogar é muita abstração, mas as pessoas veem futebol todo dia na televisão, leem no jornal e compreendem. Se você ver a arte contemporânea dessa forma, será a mesma coisa. A coisa hermética deixa de ser hermética. Na Itália, não precisa de mediação como tem aqui. Há arte para todo o lado, está nas ruas. As pessoas crescem com aquilo.”
Juliano também vê com preocupação e tristeza a onda conservadora que toma conta do país, que tem procurado criminalizar e censurar obras e artistas, a exemplo do que ocorreu no episódio recente da exposição censurada do Santander Cultural, em Porto Alegre. “Aquilo foi uma ação política do MBL [Movimento Brasil Livre]. Eles não estão nem aí para a arte”, critica. O próprio artista teve inadvertidamente seu nome envolvido numa polêmica recente em torno da nudez artística, quando um dos seus alunos, como uma provocação a um debate travado por Juliano com estudantes em torno do que podia ou não ser considerado arte, apareceu sem roupa em sala de aula. O que era um episódio que deveria ficar restrito ao âmbito da discussão intramuros da universidade tomou proporções de escândalo porque a imagem do rapaz nu circulou nas redes sociais.
“Na escola de arte, tem performance, usa-se o corpo, as pessoas ficam nuas o tempo inteiro. A aula com modelo livre foi importada da Europa há 500 anos”, contrapõe Juliano. Para ele, toda essa gritaria não passa de um moralismo tacanho e obscurantista e, além do mais, seletivo. “Na televisão, tem mulher pelada o tempo inteiro e ninguém fala nada”, protesta. Para ele, o perigo desse movimento reacionário é fazer com que as pessoas passem a se autocensurar. “Na Itália do fascismo, tinha uma autocensura, as pessoas se submetiam a ela de boa vontade. Estamos caminhando para isso. Nossa consciência está sendo vendida”, alerta.
O olhar do artista
Juliano Moraes não teve a preocupação em nomear as obras da exposição. Como sua arte tem a ver também com o informe, ele acha que dar um nome a elas já é, de alguma maneira, dar-lhes uma forma e também sugerir um caminho de interpretação, algo que prefere que fique por conta do público. Mas a pedido de ERMIRA, o artista comentou alguma de suas obras presentes na mostra Contrarquitetura. Confira:
“Parece uma peça simples. Mas passei um mês trabalhando nela. Toda estrutura é de metal, oca por dentro. É inspirada na estatuária equestre. Feita com restos de madeira, torna-se um totem diante diante do qual ficamos em posição de submissão.” Foto: Paulo Rezende
“Esta escultura foi feita baseada em um fato que um amigo meu me contou e que acontece em São Paulo. Está relacionada aos monumentos de praças públicas: bustos de heróis de guerra com seu cavalo, autoridades homenageadas. Com a transformação dos espaços urbanos, as esculturas são retiradas e levadas para uma espécie de cemitério de estátuas, porque não fazem mais sentido naquele lugar. Ficam ali abandonadas, como heróis amordaçados, fantasmagóricos. A ideia partiu daí.” Foto: Paulo Rezende
“O que é o corrimão se não um elemento de segurança que se carrega de um lugar ao outro? Fiz a peça como se fosse um equilíbrio delicado. Chamo de “corrimão infinito”. A gente passa, desce, sobe e volta para o mesmo lugar. Tem também um elemento de repetição.” Foto: Instagram do artista
“Convoquei um mestre de olaria de Nova Veneza para fazer esses potes de cerâmica, que têm um processo de fabricação muito complexo. São 12 potes unidos por fios de cobre. Não quero impor nada, nenhum significado a essa peça. Isso fica a critério de cada espectador.” Foto: Paulo Rezende
“Nessa instalação, usei carvão vegetal, matéria bruta refinada, que podemos ver como se fosse uma joia, como um tesouro extraído de elementos grotescos, muito fortes na natureza.” Foto: Paulo Rezende
“Como se o museu fosse meu ateliê, fiz a escultura no próprio espaço do museu, dando um efeito modular, espacial. A sombra projetada no chão é um elemento da obra.” Foto: Paulo Rezende
Esse artigo me deixa com um gostinho de quero mais. E também com uma pergunta: qual o motivo que leva o museu ficar tão pouco tempo com uma exposição?
Belíssimo artigo onde é apresentado o grande artista que é Juliano Moraes, e que chama atenção para esse período de obscurantismo que estamos vivendo no Brasil, com o patrulhamento moral e religioso das artes. É preciso reagir. Obrigada Ermira. Obrigada Juliano.