“Que maravilha essa madrinha de bateria”, elogia o narrador dos desfiles das escolas de samba na Sapucaí. “Curta um pouco mais sua sensualidade”, convida logo em seguida, enquanto milhões de telespectadores apreciam o corpo sarado, musculoso, torneado da modelo, da ex-BBB, da subcelebridade que desfila suas curvas em trajes quase invisíveis. Os seios à mostra, a virilha coberta por uma pintura praticamente inexistente e os marmanjos todos babando. E quando acaba o desfile, hora de fazer o comercial e a vinheta da cobertura traz uma linda negra, rodopiando praticamente como veio ao mundo. É Carnaval, minha gente! Isso pode!
Fato é que o nu feminino não é tão patrulhado quanto o masculino. Nunca foi. Nunca será. Afinal, quem é que quer ver pinto balançando por aí, não é mesmo? Nas propagandas de cerveja, nas feiras de carros, na publicidade de pontos turísticos, são as mulheres com pouca roupa que fazem sucesso. Só elas; eles quase nunca. A polêmica sobre uma performance com um homem pelado no Museu de Arte Moderna de São Paulo é mais uma prova dessa diferença de tratamento. A manifestação cultural atraiu a indignação de pessoas que jamais puseram os pés em um museu, mas se arvoram críticos de arte, fazendo julgamentos definitivos e até tentando ditar os gostos alheios.
Essa onda de direita, capitaneada por grupos organizados como o Movimento Brasil Livre (MBL), e por personalidades de reconhecido talento para o estardalhaço, como o agora cheio de pudores Alexandre Frota, argumenta que mostras como a do MAM paulista e a exposição que foi tirada de cartaz pelo Banco Santander, em Porto Alegre, influenciam negativamente os jovens e estimulam a pedofilia. Alegações bastante fortes, acusações que não se ouvem quanto à Marquês de Sapucaí, por exemplo, onde mulheres nuas desfilam ao lado de famílias que levam seus filhos menores para assistir ao “Maior Espetáculo da Terra”. Mas como são mulheres, aí pode!
Percebe-se o uso de dois pesos e duas medidas em muitos outros espaços e não é difícil identificá-los. Na TV, a exploração da imagem ocorre com os dois sexos, mas os nus são bem mais frequentes com elas que com eles. As personagens mais provocantes cabem a elas; são as atrizes deslumbrantes que tiram a roupa e desfilam na frente das câmeras; as tomadas mais ousadas cabem a elas realizar. Os homens, apenas de vez em quando, são objetificados da mesma maneira. E quando o tema é o nu, essa discrepância é ainda mais aguda. Isso ficou evidente quando o programa Amor & Sexo, da Rede Globo, levou ao ar um nu masculino frontal este ano, o que gerou uma série de discussões, algo que não acontece há algumas décadas quando uma mulher se expõe totalmente.
Não apenas nos cenários montados da TV isso pode ser percebido. Em nosso cotidiano também há evidências desse fenômeno. E nem precisa chegar ao extremo do nu. As roupas de banho revelam isso indubitavelmente. Enquanto os biquínis podem ser hipercavados, sexies, cheios de aberturas, anatômicos, estilistas se dividem se o homem deve usar bermudas ou sungas. E os próprios calções de banho têm ficado mais largos, com mais tecido, em modelos mais puritanos na contramão da moda praia feminina, em que se aposta no fio dental, nos cortes mais sensuais. As mulheres têm quase uma obrigação de se mostrarem em público; os homens quase um dever de se esconderem.
O interessante é notar que esse tabu se fez, se consolida e se perpetua por obra e graça de ambos os sexos. Essa expressão de machismo é elaborada por homens e mulheres. Em sociedades com essa característica – e a brasileira é uma delas e parece estar intensificando esse triste predicado –, as consequências de tamanha distinção eclodem ininterruptamente. O nu feminino, ao mesmo tempo que é estimulado, é considerado também vulgar, em uma estranha simbiose de condenação e oportunismo. O nu masculino, por sua vez, é praticamente subtraído do prazer feminino – afinal, “mulheres honestas”, expressão arcaica que constava nas leis até poucos anos atrás, devem se dar ao respeito e não ficar por aí vendo marmanjos pelados. Isso é coisa de viado, não é? Pois é…
Tabus como esse são naturais em qualquer sociedade, integrando sua constituição e explicando em certa medida seu itinerário histórico. É necessário reconhecê-los, compreendê-los, tentar lidar da melhor forma possível com eles. Atualmente, porém, está-se fazendo deles elementos para reforçar preconceitos, construir discursos de ódio e intolerância e nos remeter a tempos sombrios. O nu masculino, que deveria se ater a uma discussão comportamental, migra para a política, tornando-se até moeda para demagogias eleitorais e atendimento de interesses escusos. Os ataques moralistas – e terrivelmente hipócritas – à reprodução do corpo nu na arte constituem um passo perigoso. É um pessoal cheio de pudores sexuais, mas que não tem a menor timidez para atacar os outros.
Homens e mulheres nus não deveriam levantar um debate de nível tão ruim. Afinal, vivemos num País onde a sensualidade dos corpos desnudos é quase cultural. Mas, na marcha à ré que engatamos já faz algum tempo, essas polêmicas estão ficando não só mais numerosas, como também virulentas. E assim o moralismo e o sexismo se instalam, se enraízam, se aprofundam. As mulheres continuarão a mostrar todos os seus atributos, mesmo desrespeitadas, julgadas, medidas moralmente. Os homens que tentarem fazer o mesmo serão vistos com olhos de desconfiança, de malícia maldosa, de repreensão, quando não agredidos. O tabu vigora mais forte do que nunca. E mais do que nunca, abre caminho para violências, essas sim, pornográficas.
Quando eu era criança, eu me lembro de uma polêmica acalorada em torno do nu masculino. E não foi em um museu e sim em horário nobre da Globo. Na abertura da novela Brega & Chique, um modelo desfilava seu bumbum torneado para toda a “tradicional família brasileira”. Com a música do grupo Ultraje a Rigor tocando como tema, lá ia ele, desafiando os moralistas. A Globo chegou a recuar e colocar uma folhinha de parreira digital na frente da imagem, mas depois retirou e ainda tirou sarro. No Fantástico, o grupo de rock fez um clipe da canção e colocou a folha de parreira na careca de políticos e em imagens de violência.
O tabu já existia? Como eu disse, sim, claro. Lidávamos com ele da mesma forma? Acho que não. Éramos mais irreverentes, menos propensos a odiar. Afinal, como cantava o Ultraje: “Pelado todo mundo gosta, todo mundo quer… Pelado todo mundo fica, todo mundo é!”