“O amor vem por princípio, a ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/ Desprezaste esta lei de Augusto Comte/E foste ser feliz longe de mim.” A letra do samba Positivismo, de Noel Rosa e Orestes Barbosa, chama a atenção, embora na chave do humor, para um aspecto subestimado da filosofia positivista de Auguste Comte (1798-1857): a importância que a afetividade tem em sua obra. No Brasil, a corrente filosófica positivista, que surgiu no século XIX na França e tem em Comte seu fundador e nome mais expressivo, exerceu grande influência sobre os líderes do golpe militar que pôs fim ao Império e instaurou a República no país. Por conta disso, o positivismo e seu fundador ficaram associados no Brasil − e isso ocorreu em outras partes do mundo, inclusive na França − a uma tradição autoritária, simbolizada pelo emblema positivista da nossa bandeira, “Ordem e Progresso”.
Pesquisador do Institut d’Histoire et de Philosophie des Sciences da Université Paris 1 e do Centre National de la Recherche Scientifique e uma das grandes autoridades mundiais contemporâneas sobre a obra de Comte, Michel Bourdeau considera que essa imagem que se tem hoje do autor e de sua filosofia está longe de corresponder ao real significado de seu pensamento. Atualmente, Bourdeau está envolvido no monumental trabalho de uma nova edição das obras completas do pensador, que trará comentários e notas assinadas pelo professor e sairá pelo selo francês Hermann.
Michel Bourdeau não refuta a presença de elementos conservadores no pensamento de Comte e reconhece que há “coisas bizarras” na sua filosofia – principalmente na segunda fase da trajetória intelectual do filósofo, quando ele, atormentado pela morte de Clotilde de Vaux, por quem nutria uma paixão platônica, se projeta como o “grande sacerdote” da “religião da humanidade” que havia concebido. Essa religião, por sua vez, descartava qualquer elemento sobrenatural e apostava no desenvolvimento da espiritualidade humana tendo como instrumento um “dogma” baseado nas ciências clássicas: matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral.
O pesquisador francês assinala, no entanto, a atualidade de Comte na sua crítica ao liberalismo e destaca a importância dada aos afetos, à ciência e à liberdade em sua obra.
Nos dias 21 e 22 de setembro, Michel Bourdeau esteve em Goiânia para ministrar duas palestras sobre a obra de Comte na Universidade Federal de Goiás (UFG). De Goiânia, o estudioso seguiu para o Rio de Janeiro e Porto Alegre, a fim de conhecer a sedes nestas cidades dos Templos da Humanidade, fundados e mantidos pela Igreja Positivista no Brasil, criada em 1881, da qual foram “fiéis” nomes como Benjamin Constant, um dos principais articuladores do movimento militar que culminou na Proclamação da República no Brasil em 1889, e o marechal Rondon. Ao término da primeira conferência em Goiânia, o pesquisador concedeu a seguinte entrevista a ERMIRA, que também contou com a participação do professor Wagner Sanz, da Faculdade de Filosofia da UFG. Confira:
Como pensar a atualidade da filosofia de Comte para nossa época?
Comte nos dá argumentos para analisar nossa sociedade. Em particular, a crítica do liberalismo, do individualismo.
Mas por quais caminhos?
Por exemplo, eu estudei bem Hayek [Friedrich Hayek, economista e filósofo austríaco e um crítico feroz da filosofia de Comte], o papa do liberalismo. Hayek diz: a grande ideia é a existência de ordens espontâneas, o mercado se ordena de maneira espontânea. Mas Hayek não viu que a existência de ordens espontâneas está no fundamento do pensamento de Comte. Por exemplo, a estática social, em Comte, é a teoria da ordem espontânea da sociedade humana. Comte diz que há uma ordem espontânea na sociedade quando pensamos, por exemplo, nas relações de nascimento e morte, de suicídios, há uma regularidade estatística. Isso varia de acordo com as sociedades, mas reconhecer uma ordem espontânea não pode nos interditar de intervir, de modificar essa ordem.
Então, ele é contra essa palavra de ordem do liberalismo: laissez faire, laissez passer?
Exatamente. Se você pensar em Reagan [Ronald, ex-presidente dos EUA], para ele, o governo do Estado não é a solução, é o problema. Há uma vontade de desregulamentar, de diminuir a intervenção do Estado na vida social, porque o Estado é o problema. No meu espírito, e aí não é mais Comte, é deixar simplesmente as forças econômicas fazerem aquilo que elas querem.
(Professor Wagner Sanz) Você disse que Comte foi influenciado por Saint-Simon [filósofo e economista francês, um dos fundadores do socialismo moderno], e ele dizia que, para termos uma sociedade mais racional, era necessário intervir na ordem social, para que ela se aperfeiçoasse.
Exatamente. No sentido do progresso. É uma das funções da ciência. A ciência pode nos ajudar a tomar boas decisões. É algo muito presente no pensamento sociopolítico de hoje que o governo é um mal. Menos governo, melhor. Um indício disso é a expressão organização não governamental (ONG). Isso não quer dizer nada, porque a máfia é também uma organização não governamental! Você não pode caracterizar alguma coisa simplesmente dizendo que não é governamental. O que isso traduz? O que é governamental não é bom, o que não é governamental é bom. A CIA subvenciona muitas organizações não governamentais. É hipócrita e, conceitualmente, é desonesto. Comte vai dizer: nós temos necessidade de governo. Não há sociedade sem governo. É claro que o governo não governa tudo. Dessa forma, isso nos permite ter um outro olhar sobre a vida sociopolítica de hoje.
No Brasil, há uma associação da filosofia de Comte, por conta de nossa herança militarista, com um pensamento autoritário. Mas o senhor disse que isso é uma má compreensão do seu pensamento. O senhor poderia falar um pouco a esse respeito?
Há aspectos conservadores em Comte. Quando abordamos o pensamento político de Comte, há quatro ou cinco coisas, que podemos aliás multiplicar, que são suficientes para desconsiderá-lo: ele é contra os direitos do homem, ele é a favor da ditadura republicana, ele é contra a igualdade do homem e da mulher, e, além do mais, há declarações dele como “eu sou o grande padre da humanidade”, coisas bizarras assim. Ele diz ainda que não há liberdade de consciência, porque não há liberdade de consciência em astronomia, não há liberdade de consciência na ciência. Mas, quando o olhamos de mais perto, é alguém que é muito apegado à liberdade, por exemplo, à liberdade de expressão. Nos seus textos políticos, a liberdade de imprensa é total. Ele só pede que se assine aquilo que se escreve. Um dos aspectos mais incontestados da liberdade é a espontaneidade. Fazemos as coisas sem coerção, é a nossa natureza que nos impulsiona. A espontaneidade é algo que está presente no pensamento de Comte.
(Professor Wagner Sanz) Nós podemos dizer que a ditadura republicana é uma ideia para resolver os problemas que foram colocados pela Revolução Francesa?
A ideia de Comte é que o governo deve poder governar. Não podemos esquecer que a divisão de poderes em Montesquieu, se colocarmos um poder contra o outro, pode significar o caos. Vocês me desculpem dar o exemplo do Brasil. Mas se um juiz pode destituir o presidente, não há mais governo. É a desordem. É necessário que o governo seja forte. Eu não digo que Comte tenha razão, apenas descrevo seu ponto de vista. Fundamentalmente, a ditadura é uma desconfiança em relação ao parlamento.
Então, ele era contra a democracia representativa.
É exatamente isso, a ideia de representante, de governo representativo. Comte é republicano. Aliás, ele não fala de democracia, essa palavra não pertence a seu vocabulário. Grosso modo, o que ele condena é efetivamente aquilo que nós fazemos praticando a democracia, quer dizer, eleições, um parlamento que tem um poder considerável. Outra coisa: Comte era muito desconfiado com relação ao campo, às populações rurais. Ele viu que, quando se instaurou o sufrágio universal na França, os camponeses votaram pelo rei. Ele pensava que eles [os camponeses] eram conservadores no mau sentido da palavra. Para ele, o poder pertencia às cidades. E, dizendo isso, ele contentava-se em constatar aquilo que se passou na história da França. Em 1789, foi o povo de Paris que derrubou o rei. Em 1830, foi o povo de Paris que derrubou o rei. Em 1848, foi o povo de Paris que derrubou o rei. O campo não participou. As eleições nacionais tinham por função compensar um pouco esse sistema, fazendo uma representação não só parisiense, de grandes cidades, mas uma representação nacional.
O senhor disse que Stuart Mill, na Inglaterra, foi um filósofo que teve alguma influência de Comte. Essa ideia que Mill tinha de uma liderança, de uma elite que iria guiar o povo, pode-se dizer que é de alguma forma influenciada por Comte?
Mill é um personagem apaixonante que eu conheço mal. Mas, segundo a lembrança que eu tenho do Governo Representativo [tratado político lançado por Mill em 1861], é preciso, de uma parte, que todo mundo seja representado, mas é necessário, também, que os representantes sejam dignos, que tenham competência. Então, é o problema da competência exigida dos homens políticos. É o problema da expertise. Comte pensa frequentemente em termos elitistas.
Usando os termos de hoje, ele pensa em uma espécie de tecnocracia.
A ideia não é exatamente tecnocracia, mas da engenharia social. Se quisermos exprimir seu pensamento, é sobretudo um elitismo. O problema do elitismo é que é difícil conciliar elitismo e a ideia de igualdade. Comte diz que os positivistas são a elite da sociedade porque eles estão na frente. Se tentarmos compreender sua política exterior, a Europa é a elite da humanidade.
(Professor Wagner Sanz) O senhor disse que Comte era contra os direitos do homem. Por quê?
Os direitos do homem, para ele, eram muito individualistas. Eu reivindico meus direitos, eu tenho os meus direitos. É bem individualista: são os meus direitos. Os outros, se isso os incomoda, eu não ligo. O que Comte diz é que todo direito é um dever. Se eu tenho um direito, você tem o dever de respeitar o meu direito. Seria muito melhor se se insistisse sobre os deveres dos indivíduos. Porque o dever é um dever em relação a outro. O dever é diretamente social. Ao passo que o direito é muito individualista.
Ainda sobre o elitismo em Comte, o senhor em sua palestra disse que havia discípulos dele na Inglaterra que condenavam o imperialismo britânico. Como conciliar esse elitismo eurocêntrico e uma postura contrária ao imperialismo?
É muito simples. A superioridade da Europa não são seus canhões. A superioridade da Europa são suas ideias. As ideias não se impõem pelos canhões. É onde se encontra a liberdade. Você se direciona aos outros apresentando suas ideias. O que faz a força da ciência? É que por meio dela se reconhece a verdade. Você a demonstra. A superioridade da Europa, para ele, era cultural. Não é pela colonização militar que será imposta essa superioridade. Isso não se impõe, não é pela coerção. A colonização foi guerreira. Comte era contra a guerra.
Nossa bandeira nacional tem como emblema “Ordem e Progresso”, mas nós nos esquecemos do amor. E esses três elementos são muito importantes no pensamento de Comte. Como eles se conciliam no seu pensamento?
A ideia fundamental é a seguinte: entre os filósofos, nós todos temos uma fraqueza por Platão, a ideia do rei filósofo. Se nós fôssemos governados por filósofos, as coisas seriam melhores. Comte diz que isso não é verdade. O espírito [entendido como a razão] não é destinado a reinar, mas a servir. Servir tem um sentido de serviçal, mas ele corrige: o espírito é o ministro do coração. No ser humano, o espírito não é a força que domina. O que domina é o desejo, a afetividade. É este o verdadeiro motor. O princípio é o amor. Ele critica a religião católica porque diz que o catolicismo não é a religião do amor, mas do egoísmo. Cada um pensa na sua salvação. É a minha salvação que conta. Uma concepção um pouco estranha do cristianismo, mas é como ele o vê. O amor por princípio é isso. O espírito deve iluminar o coração, mas não é ele que toma as iniciativas.
E os outros elementos, a ordem e o progresso?
A ordem é o espírito que nos faz conhecê-la. O progresso, nele, é uma influência de Condorcet [Marquês de Condorcet, filósofo e matemático francês e um dos grandes líderes da Revolução Francesa]. Ele escreve uma história do progresso do espírito. A ideia do progresso nasce no século XVIII, com Voltaire. As Luzes são as luzes do progresso. Comte toma emprestada essa ideia de Condorcet e a desenvolve na lei dos três estados. Essa lei tem duas dimensões. Ela tem uma dimensão intelectual, passamos do estado teológico ao positivo, mas também uma dimensão temporal, quer dizer: no estado teológico, nos temos sociedades militares; no estado positivo, nós temos sociedades industriais. Substituir a guerra pela indústria é um progresso. Isso é outro empréstimo a Saint-Simon, que é um grande teórico da indústria, e também a Benjamin Constant [pensador e político francês, um dos principais nomes da corrente liberal na França na primeira metade do século XIX]. Benjamin Constant diz que o tempo de guerra terminou. As relações entre os povos serão regidas pela diplomacia e pelo comércio.
Mas é uma ideia que hoje é muito criticada, essa ideia de progresso.
É verdade que intelectualmente a ideia do progresso é criticada. Mas como você pode compreender todas as lutas políticas pela igualdade de sexo, o combate pelos direitos do homem? É o combate pelo progresso. O que não se vê é que tudo tende a reintroduzir a ideia de progresso.
O senhor disse que negar o progresso é uma espécie de niilismo.
Se não há progresso, a vida não tem sentido. O progresso, etimologicamente, significa uma marcha para a frente. O progresso da doença é a marcha da doença. Se a vida não é uma marcha para a frente, não tem sentido.
Como compreender a ideia de espiritualidade em Comte? É uma espécie de religião laica?
Dizem que os positivistas são materialistas, são cientificistas, etc. Há uma parte bem importante [na religião positivista] que ele chamava de culto. Havia o culto privado. Quando você lê sobre a vida de Comte, nos seus últimos anos, ele se levantava pela manhã e ia se postar diante do sofá onde se sentava Clotilde quando ela vinha na casa dele. Ele se colocava de joelhos − uma hora de prece. No almoço, ele recomeçava por um quarto de hora. E à noite, ele recomeçava por outra meia hora. Ele lia A Imitação de Cristo e a Divina Comédia de Dante. O culto privado era isso. Mas há um culto público, no qual há muitas festas. Havia o calendário positivista.
Como na Revolução de 1789.
Exatamente. É sim um pouco inspirado no calendário revolucionário. Mas era um calendário dos grandes homens. Porque sua ideia era que uma coisa que demonstrava que nossa sociedade não ia bem era o esquecimento do passado.
Então, o objeto de culto desta religião são os homens?
É a humanidade. É a humanidade porque a língua que falamos foi nossos ancestrais que nos a deram. Nossa sociedade repousa sobre conhecimentos que nos foram dados. Nós recebemos tudo de nossos predecessores. É necessário lhes prestar o reconhecimento. Então, há o culto dos grandes homens e, ao lado disso, ele previu todo um sistema de festas, a festa das mulheres, a festa do proletariado, a festa do patriciado, a festa das máquinas, a festa do fogo. Todos os domingos, ao invés de ir à igreja, se fariam festas. Ele imita muito a religião católica, propunha sacramentos, sacramentos laicos. Por exemplo, o batismo, que é receber um recém-nascido na sociedade. Se não há batismo religioso, a sociedade não o recebe. Então, ele propunha um batismo laico. Enfim, há aspectos [em Comte] que são ridículos, mas há aspectos que são profundos.
Abaixo, confira uma interpretação do samba Positivismo (Noel Rosa/Orestes Barbosa), com Paulo Miklos e o Quinteto em Branco e Preto:
As palavras (ridículo e bizarras),usadas pelo entrevistado(Michel Bourdeau),mostram que ele tem um desprezo pela obra religiosa de Augusto Comte,bem como um certo desdém pela vida que Augusto Comte teve; Quanto a afirmação de que ( o catolicismo,não é a religião do amor e sim do egoísmo,cada um pensa na sua salvação),dizer que isso é uma concepção estranha do cristianismo,que Augusto Comte tem,é um absurdo pois todos que se afastam tem essa concepção e quase toda a Europa vem se afastando do cristianismo,e igrejas estão sendo fechadas para dar lugar a bares e casas noturnas,ou seja a fé no sobre natural perdeu sua utilidade para a sociedade e conforme previu Augusto Comte,quanto mais educação e conhecimento o ser humano tiver,menos crenças em deuses e superstições ele terá. No que se refere ao regime político defendido por Augusto Comte, a tal Ditadura Republicana de que todos gostam de falar,só para criticar Augusto Comte,é preciso dizer que essa ditadura é provisória,pois sua finalidade é impedir a anarquia e as revoluções(armadas e violentas),construindo uma ordem,(Educação,Segurança,Trabalho e Justiça)para todos objetivando o progresso,sendo que essa Ditadura Republicana provisória seria então substituída pela Sociocracia,a verdadeira forma permanente de governo da humanidade,onde não precisamos de políticos(legisladores),decidindo por nós,pois através de um plebiscito sociocrático o povo pelo voto decidiria o que será lei ou não,portanto o sistema filosófico,político e religioso de Augusto Comte esta sempre buscando se aperfeiçoar desmentindo as críticas de que seriam idéias conservadoras.