Certa feita, numa dessas já raras entrevistas, Chico Buarque disse que a ditadura não lhe parecia a melhor inspiração para compor. Que sem ela, a MPB não seria pior nem melhor, apenas seria. “O papel do artista na ditadura é superdimensionado. Não tenho a menor nostalgia disso”, disse à Folha de S. Paulo em 1997, durante lançamento de Chico Buarque de Mangueira, disco que virou show (que virou disco de show) em homenagem à escola de samba, que o homenagearia no ano seguinte.
Fazia ali nova tentativa de distinguir sua produção lírica da política, num esforço repetido ao longo de sua carreira pós-ditadura, sempre superdimensionada, na visão dele, como o compositor mais político que o país conhece. O fato é que é mesmo difícil separar o Chico lírico do Chico político, senão pela sua fina crônica musical, talvez pelo seu engajamento, ainda que não formalmente militante.
E Caravanas (gravadora Biscoito Fino), seu 23º disco de estúdio, vem de novo alimentar essa visão sobre o compositor. Certamente por chegar num tempo em que o país volta a lidar com sua insuperável indelicadeza. Da divisão política recente, o Brasil segue firme em sua caminhada rumo à irracionalidade e à intolerância política e comportamental, agora insuflada por grupos políticos organizados e pelas redes sociais.
Vídeo da faixa-título do novo disco de Chico Buarque. Participação especial do rapper Rafael Mike
Mesmo que recluso, de pouca aparição pública e tímido também nas redes sociais, que Tom Zé chamou de “Tribunal do Feicebuqui”, Chico Buarque acabou entrando no fla-flu político que tomou conta do país a partir do segundo governo da presidente afastada Dilma Rousseff. Incluindo xingamentos online e infortúnios ao vivo, em porta de restaurante no Leblon (RJ).
Até tentou se esquivar dos embates, mas acabou levado de roldão pelas massas digitais, gente que parece quase compelida pela facilidade tecnológica a dar opinião sobre tudo e todos. Algumas das sete novas canções (do total de nove do disco) parecem ser, senão respostas diretas a isso, ao menos uma vazão poética do compositor que não está alheio a seu meio, como de fato nunca esteve. Acaba por devolver o cronista perspicaz de sempre, em criações certeiras que andavam sumidas de seu repertório.
Um sarro aos haters
Ele parece tirar sarro dos haters, os espalhadores de ódio, no jargão das redes sociais na internet. Chico segue não dando entrevistas sobre seus novos discos. Como um juiz que só fala nos autos (a menos que seja um Gilmar Mendes), prefere deixar que as canções falem por si. Mas não só. A própria internet tem sido mais explorada para revelar detalhes das composições e bastidores das gravações. Como num deslumbre jocoso que ele mesmo revelou sobre as redes sociais no material de divulgação do álbum anterior (Chico, de 2011), ele agora parece saber lidar bem com as facilidades da rede mundial de computadores. E até se diverte com isso.
Aos mantras raivosos de “vá para Cuba” dos últimos anos, Chico Buarque recuperou um bolero que o baixista Jorge Helder, parceiro de longa data, fez para a cantora Omara Portuondo gravar com letra dele, Chico. O disco de Omara acabou não saindo e ele não perdeu a chance de gravar a canção Casualmente, escrita e cantada em espanhol e português.
Há seis anos, Chico se surpreendia divertidamente sobre o comportamento humano nas rede sociais
Mas o que o artista certamente não esperava é que antes mesmo de chegar ao distinto público, o disco suscitaria novos frissons digitais, bem ao gosto do politicamente correto, cegamente em voga. A primeira faixa do álbum, Tua Cantiga, atiçou a sanha de feministas e odiadores de plantão puxados pela produtora Flávia Azevedo, colunista do diário Correio da Bahia.
Flávia achou a música “datada”, de um romantismo superado por conter versos em que Chico canta a possibilidade de deixar mulher e filhos pela amante. Fã do artista, revelou até um desapontamento por vir dele, aventado conhecedor da alma feminina, tal acinte “machista”. À saraivada de postagens contra e a favor, ele se resumiu a uma resposta curta em sua página no Facebook, dizendo que “machismo é ficar com a família e a amante”.
Musicalmente, Tua Cantiga não é nem um pouco datada, mas com certeza é antiga. Tributária do trovadorismo, a canção é uma parceria com o pianista Cristóvão Bastos, outro velho parceiro do compositor. Bastos construiu a música em compassos polirrítmicos (8×6 e 3×4) ao piano, um lundu barroco adornado apenas por um chocalho percussivo para Chico letrar o que a má interpretação achou fora do tom emancipatório da mulher de agora.
Samba, blues, jazz
A dupla lírica novata do curto álbum (Chico cada vez mais compõe menos) é completada pelo blues de diva lésbica (Blues Pra Bia). Letra e música dele, esse blues recupera influências pré-bossas de Chico Buarque, assim como a canção-título, inspirada em Caravan, tema clássico do jazzista Duke Ellington (1899-1974).
Outras duas faixas líricas do disco são gravações de composições dele já registradas antes por Maria Bethânia (A Moça do Sonho, parceria com Edu Lobo para o musical Cambaio) e Nara Leão (Dueto, de 1980, do álbum Com Açúcar, Com Afeto), que reaparece aqui em dupla com a neta Clara Buarque. Ao final, avô e neta atualizam a letra recitando as novas ferramentas de redes sociais.
Caravan, tema de Duke Ellington e Juan Tizol, 1937: inspiração para as Caravanas de Chico Buarque
Assunto recorrente em sua vida e obra, o futebol é metáfora do tempo no samba Jogo de Bola, e o samba-canção Desaforos recupera os dissabores entre homem e mulher para chegar, de novo, à intolerância política que campeia a esmo. Na linha de Injuriado (do disco As Cidades, 1998), Desaforos tem melodia levada apenas ao violão, piano, trompete e adornos de vibrafone.
Em mais duas músicas, Chico se aproxima das novas gerações. Com o outro neto, Chico Brown (também filho de Helena e Carlinhos Brown, como Clara), fez Massarandupió, uma bela valsa composta pelo jovem músico da família que o arranjador de Chico, Luiz Cláudio Ramos, encorpou com orquestra e deixou a guitarra havaiana de Brown pontuando aqui e ali. A letra remete à infância do próprio Chico Brown pelas areias da praia baiana que dá nome à música.
E o último sopro de juventude aparece na faixa-título, com participação de Rafael Maike, rapper do grupo Dream Team do Passinho, fazendo beat box de tamborzão de funk em Caravanas. Outra criação solitária do compositor, em letra e música, a canção tem melodia levada ao violão na primeira parte, instrumental que cresce para cordas e metais na segunda parte.
A letra atualiza o antigo embate casa grande e senzala, entre a classe média carioca horrorizada com a invasão da negrada da favela que invade a orla nos fins de semana. A esse reclame Chico junta as novas ondas migratórias, aponta para o ódio de classe, a “raiva que é filha do medo e mãe da covardia” e lança a ironia mordaz da culpa “que deve ser do sol” (empréstimo do romance de Albert Camus, a quem Caetano Veloso também já recorreu para descrever o Brasil em canção).
Ouvido e reouvido com atenção, Caravanas revela o mesmo Chico de sempre, talvez mais redivivo pela ebulição sociopolítica que o país experimenta, com novos elementos e personagens. Bem resolvido musicalmente (a mesma turma competente segue com ele), está de volta a poesia desconcertante de aliterações brilhantes, rimas nada óbvias e métricas redondas. Poderá ser visto como um bom retrato sonoro de um tempo, ainda que há quem prefira eleger O Rigor e a Misericórdia, o último disco de João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão.
A turnê do novo disco de Chico Buarque começa no próximo dia 13 de dezembro, pelo Palácio das Artes, em Belo Horizonte (MG). Depois segue em janeiro para o Rio de Janeiro (4 a 21, no Teatro Vivo Rio) e em março vai a São Paulo (1º a 11, na Casa Tom Brasil).
Adorei os poemas escolhidos do Faustino, e também o artigo do Wander comentando o último cd do Chico Buarque.
Bravo!
Muito legal, ainda bem que músicos, poetas, jornalistas e comunicadores ainda têm liberdade para se expressar. Parabéns pelo post!!!
Belo texto. Ainda bem que só o li após fazer a crítica “A culpa deve ser do sol” para o Opção Cultural. Gostei muito. Parabéns!