(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Brasão
Nasce do solo sono uma armadilha
Das feras do irreal para as do ser
− Unicórnios investem contra o Rei.
Nasce do solo sono um facho fulvo
Transfigurando a rosa e as armas lúcidas
Do campo de harmonia que plantei.
Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de ouro que implorei.
E nasce nu do sono um desafio.
Nasce um verso rampante, um brado, um solo
De lira santa e brava − minha lei
Até que nasça a luz e tombe o sonho,
O monstro de aventura que eu amei.
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[2]
Legenda
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se entendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga do meu dia −
E mudo sou para cantar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
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[3]
Vida toda linguagem
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
Feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará − oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem −
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno
[contra a chuva,
tenta fazê-la eterna − como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
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[4]
Estava lá Aquiles, que abraçava
Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.
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[5]
Balada
(Em memória de um poeta suicida)
Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura),
Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!
Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares − tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!
Envoi
Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não estás mais comigo. Nem conTigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.
Perfil
Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina (PI), em 22 de outubro de 1930, e morreu em um acidente aéreo, nas cercanias de Lima, capital do Peru, em 27 de novembro de 1962. Concluiu o curso ginasial em Belém do Pará. Aos 16 anos, foi contratado pelo jornal A Província do Pará, onde trabalhou de 1942 a 1949, fazendo traduções e escrevendo editoriais, crônicas e resenhas sobre filmes. Transferiu-se em seguida para a Folha do Norte. Em Belém, frequentou círculos de intelectuais que incluíam Benedito Nunes, Max Martins, Haroldo Maranhão, Rui Barata e o poeta norte-americano Robert Stock. Permaneceu dois anos nos Estados Unidos como bolsista para realizar estudos de Teoria da Literatura e Literatura Norte-Americana. Ocupou cargo de destaque na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Em 1955, lançou O Homem e sua Hora (Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1955), o único livro de poesia publicado em vida. Mudou-se em 1956 definitivamente para o Rio de Janeiro. A partir deste ano até 1958, foi professor da Escola de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas. Nesse período, dedica-se intensamente à literatura. Dirige a página Poesia-Experiência do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, no qual exercita a crítica de poesia, demonstrando erudição e rigor analítico, traduz autores importantes e divulga poetas promissores. Inspirou-se em T. S. Eliot e Ezra Pound para formular os seus princípios estéticos. Publica os seus poemas em jornais e revistas que, mais tarde, constituirão os seus inéditos e dispersos. Como funcionário da ONU, mudou-se para Nova York em 1959. Ao retornar ao Brasil, reassumiu as suas atividades jornalísticas no Jornal do Brasil e na Tribuna da Imprensa. Mário Faustino teve a sua obra publicada postumamente. Para conhecer a sua poesia e parte de sua crítica, o leitor deve procurar os seguintes livros: Poesia-Experiência (Perspectiva, São Paulo, 1997), no qual trata da leitura dos grandes poetas de sua predileção estética; Poesia de Mário Faustino (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966), que contém um alentado ensaio de Benedito Nunes sobre o seu único livro; Mário Faustino ̶ O Homem e sua Hora e Outros Poemas (Companhia das Letras, São Paulo, 2002), com pesquisa, organização e apresentação de Maria Eugênia Boaventura; De Anchieta aos Concretos (Companhia das Letras, São Paulo, 2003), organizado por Maria Eugênia Boaventura, reúne textos publicados em 1957 e 1958 que tratam de quatro séculos de poesia brasileira e de língua portuguesa; Artesanatos de Poesia (Companhia das Letras, São Paulo, 2016), organizado por Maria Eugênia Boaventura, apresenta textos críticos sobre autores que fundaram a modernidade e instituíram a vanguarda no início do século 20.
Parabéns pela seleção certeira. Mário Faustino é um clássico revolucionário, inovador, sensível e com produção de alta qualidade estética.
Até hoje eu procuro no meio poético literário alguém ou poemas que mantenham o nível assustadoramente culto e belo de genial Mário Faustino! Nível dificilmente encontrado no país!