“Vinte e sete anos de prisão não produzem uma inteligência conciliadora. Um confinamento tão longo engendra vassalos ou assassinos”, observa o escritor franco-argelino Albert Camus, no seu livro O Homem Revoltado, a propósito do Marquês de Sade. Os escritos libertinos do aristocrata francês contemporâneo da Revolução de 1789, aliados a seu comportamento extravagante e pervertido, escandalizaram tantos os monarquistas quanto os republicanos e, por isso, lhe renderam quase três décadas de encarceramento.
Ao longo de mais de dois séculos, a literatura erótica de Sade – cujo nome, não por acaso, deu origem ao termo “sadismo” – continuou provocando reações que vão da admiração, passando pela perplexidade, até a indignação. Camus está do lado daqueles que não consideram Sade um grande escritor. Mas vê no autor de Justine um precursor das ideologias totalitárias da primeira metade do século XX, por ter erigido uma moral da dominação ao proclamar o império dos desejos sobre a razão e a ética – e quem leu 120 Dias de Sodoma ou viu a crua adaptação desse livro que exalta a tirania sexual para o cinema por Pasolini, em Saló, compreende perfeitamente o raciocínio de Camus.
Já Roland Barthes, num ensaio sobre Sade, aponta o escritor libertino como o fundador de uma nova linguagem: a linguagem do erotismo. Para Barthes, os críticos de Sade geralmente o censuram, por razões morais, por insistirem em identificar em sua obra traços de realismo. Mas o universo de Sade, argumenta Barthes, é o universo da imaginação, do discurso. Sade daria prova disso ao elevar o êxtase sensual acima de qualquer possibilidade de realização concreta – e os cerca de 600 tipos de perversão descritos pelo autor em 120 Dias de Sodoma podem constituir um exemplo de que o mundo erótico sadiano está mais próximo da fábula do que da realidade.
Filosofia
Se tivesse se limitado a escrever histórias de perversão sexual, Sade dificilmente sairia da vala comum destinada aos escritores de pornografia. Mas o propósito do autor era erigir uma filosofia – a filosofia do vício. Contrapondo-se ao pensador que influenciou os revolucionários de 1789, Jean-Jacques Rousseau, o idealizador do protótipo do bom selvagem, Sade alia-se a Hobbes, o autor do Leviatã, ao realçar a inclinação dos seres humanos para o mal.
Mas enquanto Hobbes concebe um Estado absolutista que refrearia a compulsão dos indivíduos para se destruir uns aos outros, Sade celebra uma sociedade sem amarras, em que a emancipação do homem se realiza, conforme sublinha Camus, “nas fortalezas da licenciosidade, onde uma espécie de burocracia do vício regulamente a vida e a morte dos homens e mulheres que entraram para todo o sempre no inferno da necessidade”.
Em outras palavras, Sade, ainda de acordo com Camus, “codifica a maldade humana”. “Aceitem a liberdade do crime, que é a única liberdade racional, entrem para sempre na insurreição, assim como se entra em estado de graça”, conclama Sade.
É claro que essa sociedade da perversão idealizada por Sade, que proclama como ideal o império sem freios do desejo sexual, está longe de ser democrática. Para que se possa dar livre curso aos tresloucados devaneios eróticos que ele concebe, é preciso ter à disposição uma legião de escravos que se submeta passivamente a eles.
Servos sexuais
Os heróis das histórias de Sade são sempre fidalgos libertinos que têm todos os direitos, inclusive de vida e de morte, sobre os seus servos sexuais. Mantendo-se nesse aspecto bem coerente com suas origens sociais, Sade vislumbra sua cidadela sensual como uma sociedade de castas, altamente hierarquizada. A única forma de ascensão, como afirma Camus, é quando um dos oprimidos se insurge, por força da sua própria perversidade, e consegue igualar-se aos demais tiranos sexuais.
“A sociedade sadiana não é cínica, ela é cruel. Ela não diz: é necessário que haja pobres para que os ricos existam; ela diz o contrário: é necessário que haja ricos para que os pobres existam; a riqueza é necessária porque ela transforma a infelicidade em espetáculo”, destaca, por sua vez, Roland Barthes.
Curiosamente, ressalta Barthes, as bacanais imaginadas por Sade em seus textos são executadas sob uma rigorosa disciplina – “os desregramentos são energicamente regulados”. Há sempre um grupo de auxiliares dos libertinos-chefes encarregados de organizar os grupos de orgias e de ordenar cada “procedimento” sexual. Na burocracia do sexo inventada por Sade, parece que sobra pouco espaço para o prazer.
Apologista do crime, a ideia que Sade tem de Deus é a de uma divindade que esmaga o homem. “Segundo Sade, a história das religiões mostra com bastante clarividência que o assassinato é um atributo divino. Por que, então, seria o homem virtuoso?”, indaga Camus.
Sade revolta-se contra a natureza e, ao proclamar o direito que o homem tem de aniquilar o seu semelhante em nome dos seus desejos sexuais, acaba por vislumbrar o extermínio da humanidade – “se, na natureza, só o desejo e a destruição são legítimos, então, de destruição em destruição, a humanidade inteira não basta para matar a sede de sangue, é preciso correr para a aniquilação”, diz Camus.
Mas, afinal, como esperar que um homem que passou 30 dos seus 74 anos na cadeia nutra amor ou compaixão por seus semelhantes? “Nesse sentido, Sade é exemplar, pois, na medida em que foi tratado de forma atroz pela sociedade, reagiu de modo atroz”, concorda Camus.
Perfil
Donatien-Alphonse-François de Sade, o Marques de Sade, nasceu a 2 de junho de 1740. Como todo bom filho da nobreza, teve uma educação exemplar, passou pelas fileiras do exército e arrumou um casamento conveniente com uma burguesa endinheirada.
O matrimônio não interrompeu nele um hábito que vinha cultivando desde a época em que servia como militar: as orgias com prostitutas e vedetes de teatro. Em 1768, num desses excessos sensuais a que costumava se entregar, torturou uma cortesã que o denunciou. Sade foi encarcerado por seis meses.
Em 1772, foi condenado à morte, dessa vez sob a acusação de envenenamento (em outra bacanal, tinha oferecido drogas afrodisíacas para quatro mulheres e uma delas adoeceu gravemente). Fugiu para a Itália, e, cinco anos depois, foi detido quando retornava à França. Com a derrubada da Bastilha (a famosa prisão de Paris), em junho de 1789 pelo povo parisiense, o estopim da Revolução Francesa, conseguiu ser transferido para um asilo e, em 1790, ganhou de novo a liberdade.
Por pouco, escapou da guilhotina na caça aos nobres empreendida pelo regime do Terror, tendo à frente o líder jacobino Robespierre. Porém, em 1801, acusado agora de “pornografia”, em virtude de seu romance Justine, foi mandado pela polícia do imperador Napoleão para um asilo de loucos, em Charenton, onde ficaria até a morte, aos 74 anos, em 1814. Durante os anos em que ficou preso, Sade dedicou-se a compor uma série de romances eróticos, dos quais os mais famosos são 120 Dias de Sodoma, Os Infortúnios da Virtude e Justine.