“Duas coisas me deixam impressionado: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.” Esta célebre frase, proferida por Immanuel Kant (1724-1804), não é só uma espécie de síntese da ética formulada pelo pensador alemão – segundo a qual um mesmo imperativo moral move não apenas todos os seres humanos, mas todos os seres racionais do universo. Ela também traduz uma ideia de universalidade que foi a base do Iluminismo e serviu de fermento para a formação de uma convicção de que todos os habitantes deste planeta pertencem à mesma família humana, inspirando as várias declarações de direitos humanos no Ocidente.
Nobre em suas intenções, essa visão universalista do homem carrega, no entanto, segundo muitos dos seus críticos, um vício de origem: o que ela toma por universal não passaria, no fim das contas, de uma concepção ocidental, para não dizer europeia, do ser humano. E – o pior – acabaria servindo como fundamento para a ação imperialista das potências ocidentais sobre o resto do mundo, sempre em nome da “humanidade”.
Esta e outras questões controversas são discutidas pelo filósofo francês François Jullien no livro Diálogo Entre as Culturas – Do Universal ao Multiculturalismo. Julien sabe que pisa em campo minado ao fazer a crítica ao universalismo, levando-se em conta que aquilo que é apresentado como seu reverso – o relativismo – também pode conduzir a situações paradoxais.
Em nome de uma postura relativista, corre-se o risco, por exemplo, de se conformar com o fato de que milhares de mulheres na África e na Ásia sejam submetidas a pavorosas mutilações genitais, sob o argumento de que essas práticas fazem parte da cultura de suas regiões. No seu relato autobiográfico intitulado Infiel, a escritora somali Ayann Hirsi Ali faz uma dura crítica a essa perspectiva, afirmando que ela termina por conduzir à indiferença para com o sofrimento das vítimas e até mesmo à cumplicidade em relação aos seus algozes.
Globalização
Segundo Jullien, no centro de muitos mal-entendidos sobre o universalismo, está o esforço, no mundo globalizado em que vivemos, em propagandear o “global” como “universal”. No primeiro capítulo do livro, o filósofo tenta estabelecer algumas distinções nesse terreno.
Uma delas é fazer a separação entre as noções de “universal” e “uniforme”. O universal é um conceito da razão e está voltado para o Um – uni-versus –, traduzindo uma aspiração a seu respeito. Já o uniforme está relacionado à produção de mercadorias, à fabricação em cadeia.
A globalização, na verdade, tentaria “vender” aquilo que é uniforme como universal. Como se o fato de um jovem chinês se vestir de maneira semelhante a um norte-americano de sua idade, e de ambos apreciarem os livros de Harry Potter, significasse que os dois compartilham os mesmos valores ditos “universais”, passando por cima das particularidades de cada cultura e confundindo-as com hábitos de consumo.
Segundo François Jullien, enquanto o universal tem como oposto o individual, o singular, o que se confronta diretamente com o uniforme é o diferente. Por isso, a ditadura da uniformização, impulsionada pelo capitalismo global, tende a considerar como “atrasado”, ou a enquadrar como “exótico”, tudo aquilo que escapa a seu poder.
Comum
Entre o universal e o uniforme, o filósofo francês propõe outra via, que é a do comum. O comum não é um conceito lógico, derivado da razão, como o universal, nem tampouco um conceito econômico, relacionado à produção, como o uniforme. A essência do comum é a política. “O comum é aquilo de que temos parte ou tomamos parte, que é partilhado e do qual participamos”, sublinha Jullien.
A pólis grega é o exemplo por excelência do triunfo da ideia de comum. O modelo da cidade-Estado concebido pelos gregos não buscava uma uniformização de pensamento entre os seus cidadãos – os quais encontravam, nas assembleias públicas, o espaço para manifestar suas diferentes opiniões e perspectivas –, mas essas diferenças individuais partilhavam de algo que as unia: o mundo comum em que viviam. Fenômeno único e iluminado na história da humanidade, a pólis grega, no entanto, teve uma duração breve e se limitava a poucas centenas de cidadãos – os quais, aliás, usufruíam de uma experiência de democracia direta em meio a uma estrutura social baseada no trabalho escravo.
E se a experiência da pólis soa utópica hoje dentro de um única nação, o que não dizer de uma proposta em que ela sirva de base para estabelecer um diálogo entre culturas diversas?
François Jullien argumenta que o caminho pode estar naquilo que é comum a todos os seres humanos: o pensamento. “Comum a todos é o pensar” – é a sentença de Heráclito que ele toma de empréstimo para fundamentar seu raciocínio. O pensamento torna possível a compreensão, que é a atitude de se abrir para o outro, de tentar tornar inteligíveis os valores de uma cultura diferente da nossa. No fundo, é o que Kant denominava de “pensamento alargado”, um exercício de reflexão que leva em conta não apenas o nosso próprio ponto de vista, mas as perspectivas alheias.
Essa postura de tolerância não pode ser confundida, no entanto, com uma atitude de permissividade – compreender não significa aceitar, para lembrar a fórmula de Hannah Arendt –, o que nos impediria de cair nas armadilhas de um relativismo levado às últimas consequências. Sobre esse aspecto, Jullien fala nos direitos humanos num sentido negativo, não se limitando a um enunciado formal de direitos idealmente pertencentes a toda criatura humana, mas como forma de estabelecer aquilo que seria inaceitável – em qualquer cultura.
É claro que essas proposições do filósofo francês são passíveis de diversas críticas. Num mundo dominado pela força do dinheiro e das armas, e ainda subjugado pelos diversos fanatismos religiosos e pelo fortalecimento de uma extrema direita xenófoba e intolerante, que lugar poderia haver para o diálogo? Não estaria François Jullien sendo por demais idealista ao apostar no pensamento – e, portanto, na razão – como a via de entendimento entre os homens, alimentando uma esperança iluminista um tanto quanto ingênua e datada para os tempos contemporâneos?
É preciso dizer, no entanto, que, como um filósofo que faça jus a seu ofício, François Jullien não procura fornecer uma receita para a crise, mas apresentar uma reflexão que se liberte das estreitezas de um único modo de conceber o mundo – no caso, o ocidental – e se abra para outras culturas, outras experiências mundanas. Uma proposta que nos leva, no mínimo, a um exercício de tolerância, sempre bem-vindo nesta nossa época de extremismos.