Na segunda parte de O Som e a Fúria – um dos mais importantes livros do escritor norte-americano William Faulkner (1897-1962) −, o personagem Quentin, incomodado com o barulho do relógio que ganhara de presente do pai e que pertencera ao avô, quebra o vidro que protegia o mostrador do aparelho e arranca-lhe os ponteiros. No entanto, a engrenagem continua a funcionar, emitindo seu impassível tique-taque.
Essa passagem é profundamente simbólica no contexto da narrativa não apenas por traduzir a ânsia desesperada de Quentin, em sua tentativa irracional de congelar o tempo, ao destruir o relógio – ele que é um estudante universitário preso ao passado glorioso da família e completamente deslocado em meio à sociedade de consumo que desabrochava nos EUA no início do século passado. Mas também porque condensa, por assim dizer, a ideia geral que percorre esse grande romance: a fragilidade da existência humana diante da ação inexorável do tempo.
Porque o tempo parece ser o mais importante personagem de O Som e a Fúria. É o tempo histórico em que se desenrola a trama, de 1910 a 1928, período que marca a lenta agonia dos Compson, outrora influente família aristocrática do sul dos Estados Unidos. A desagregação e a decadência desse núcleo familiar compõem, na verdade, um retrato em miniatura dessa região norte-americana, onde Faulkner nasceu, nas primeiras décadas do século 20. Uma região que ainda não havia se curado da derrota sofrida na Guerra da Secessão e que se dividia entre o desejo – para ser mais exato, a necessidade – de se integrar à onda industrializante proveniente do norte do país e a nostalgia de um passado sustentado nas grandes propriedades e no trabalho escravo, sentimento que alimentava a intolerância racial e a segregação dos negros.
É ainda o tempo subvertido, desconexo, caótico dos personagens do romance. Faulkner emprega a técnica do fluxo de consciência inaugurada por James Joyce em Ulisses, que é levada ao extremo na primeira parte de O Som e a Fúria. Nela, o autor registra as impressões de Benjy, um homem de 33 anos com idade mental de uma criança de três. Esse personagem vive em uma espécie de caos cronológico, no qual lembranças do passado e as percepções mais imediatas do presente se misturam, sem nenhuma hierarquia. Faulkner escreve de modo a acompanhar esse estado mental de Benjy, transgredindo as normas de pontuação e de sintaxe e limitando-se a registrar as livres associações do personagem.
Incesto
Na segunda parte do livro, a narrativa prossegue sem uma sequência linear, alternando-se entre passado e presente, mas de uma forma mais contida, estruturada a partir do fluxo de pensamentos do já citado Quentin, um rapaz atormentado que nutre uma paixão incestuosa pela irmã Caddy. No capítulo seguinte, Faulkner dá voz a Jason, o irmão caçula de Benjy e Quentin, e se o escritor põe um pouco de lado as transgressões de tempo e linguagem das duas primeiras partes da obra, em contrapartida, faz com que a trama assuma o tom nervoso e obsessivo do personagem, um tipo consumido pela avidez, pelo ódio e pela inveja.
O romance se encerra com a voz narrativa passando para a terceira pessoa, quando entra em cena o conflito entre Jason, de um lado, e Candance e Dilsey, de outro – a primeira, a sobrinha bastarda de Jason, e a segunda, a velha empregada negra da família, cuja presença “pesa como a ferida aberta dos tempos de escravidão”, para usar as palavras do crítico Rubens Figueiredo na apresentação da edição do romance lançada no Brasil pela CosacNaify.
Por meio dos conflitos internos e externos desses personagens, o leitor vai desvendando aos poucos o drama dos Compson, uma família da qual saíram generais, um governador, ricos proprietários de terra e que, no presente, se vê reduzida a um estado de penúria econômica e degradação moral. Em meio a esse ambiente de ódio e ressentimento, o grito do deficiente mental Benjy que ecoa nas páginas finais do romance é a tradução da ausência de sentido dessas existências frustradas. E esse grito também joga luz sobre o título da obra, extraída de uma passagem de Macbeth, de Shakespeare, que diz ser a vida “uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e que não significa nada”.
Coincidência? Assisti no feriado de ontem (15/110 o filme de James Franco, realizado a partir do livro de William Faulkner. Além de dirigir, Franco interpreta Benjy, um dos três personagens que dividem livro e filmes em capítulos. É interessante a forma sutil com que Franco filma cada segmento, respeitando certos traços estruturais do clássico de William Faulkner.
Obrigada pelo comentário, Tatá. Não conheço este filme do James Franco. Tenho em casa uma adaptação do Martin Ritt, de 1959, com o Yul Brynner e a Joanne Woodward. O diretor é muito bom e o elenco é maravilhoso, mas a tarefa de transpor esse livro para o cinema é bem inglória. Assim, o resultado é apenas mediano. Bjs.
Rosângela