Já era muito tarde, quando comecei a rabiscar os primeiros sinais sobre o papel e escrevi, sem querer, a seguinte frase, como uma asneira que procura a sua exegese:
“O mal é radical.”
Num zumbido, sem mais nem menos, essa sentença irrompeu de um lugar recôndito do meu cérebro. Examinando depois a caligrafia e pensando o seu sentido, lembrei-me da mulher, não só bonita como inteligente − e por fim entendi por que a escrevera, num surto compreensível de lucidez perplexa.
A beleza e a sabedoria formam o par ideal do pensamento e os contornos das estátuas gregas. Talvez seja por isso que procuro a órbita em torno da qual estar ali, ao lado dessa mulher, tomar chardonnay e ouvir As Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss, significassem um privilégio e, sem querer me gabar, um milagre que atinge apenas os corações mais singelos. Na homenagem ao compositor que escrevera canções tão condoídas, que sempre vão torturar um espírito que convive com a brandura e a corrosão, eu lhe disse:
“Eu troco então dois Sartre por um Kant.”
Com os seus óculos de lentes grossas, as coxas apertadas num short curto, as pernas apoiadas ora no sofá, ora na mesa de centro, ela retrucou, lamentando-se mais do que reconhecendo o horror que a frase inspirava-lhe:
“Não existe Kant para principiantes.”
A filosofia não é só a luz que cega os espíritos incautos − ela inclui ainda a língua bífida e a sombra que flutua sobre a lombada dos clássicos.
“Se algum dia eu ler a Crítica da Razão Pura e compreender como pensava um alemão do século 18, talvez entenda as loiras de Goiânia que dirigem os seus carrões com vidros escuros levantados.”
Imediatamente, ela reclamou:
“Assim, você não faz justiça nem ao Kant, nem às loiras.”
Para não parecer tão cretino, eu disse esta frase boba, para encerrar o assunto:
“As loiras de Goiânia, coitadas, nunca vão ler os filósofos que você ama!”
Com o intuito de proteger a minha vocação hedonista, eu não queria perder-me nos labirintos da filosofia. Naquela noite, eu estava muito mais para o néctar de Paulo Vanzolini do que para o pólen dos textos preciosos.
O samba está repleto de pensadores e de bons sujeitos. Ele não é só uma canção − é também uma explicação do que somos e sentimos, do lugar de onde viemos e onde construímos a nossa conformidade. Na sua alegria de viver o espanto da vida, Ataulfo Alves criou uma academia.
Não sei quantos homens podem gabar-se de ter encontrado um lugar onde sua cabeça não esteja a prêmio. Nem onde o seu paletó seja amarrotado, nem onde o seu copo fique vazio. Nem onde Carissimi valha mais do que Marin Marais.
Todas as terças-feiras, quase todas, a bem da verdade, quando era possível, eu ia para esse lugar − essa Terra do Nunca, essa sala que me protegia da efemeridade vulgar, esse lugar enfim que me colocava ao abrigo do medo de perder-me pelos túneis medonhos nos quais diariamente trafegamos.
(Esses túneis que atravessamos todos os dias como se procurássemos mais adiante futuros desastres.)
E, ali, entre a ficção e a delicadeza, naquele lugar que não tem nome, eu reinventava as minhas leituras, os minúsculos tremores, o gesto distraído de colocar a mão na cabeça, a partícula ínfima na qual irei tornar-me um dia, sem despender o menor esforço para ganhar o sono dos tempos que nunca terão fim − esse sono do qual não se acorda…
Como você escreve bem, Luís! Delícia de leitura. Obrigada.