(Tradução de Luís Araujo Pereira)
Durante o Salão de 1859, contemplando o quadro Paysanne gardant sa vache, de Millet, Baudelaire levantou uma questão: “Ao invés de extrair simplesmente a poesia natural de seu tema, M. Millet pretende a qualquer preço acrescentar nele qualquer coisa. Em sua monótona feiura, todos esses pequenos párias têm uma pretensão filosófica, melancólica e rafaelesca. Essa infelicidade, na pintura de M. Millet, estraga todas as belas qualidades que atraem antes de tudo o olhar para ela.” Delacroix, de modo semelhante, ao receber Millet no dia 16 de abril de 1858, considerava, assim como ele salientou em seu diário, que havia em suas obras pictóricas um “sentimento profundo, mas pretensioso”..,
O Palácio de Belas Artes da cidade de Lille, situada na região norte da França, organizou uma exposição sobre este pintor célebre, mas que, na realidade, nunca foi verdadeiramente aceito. A exposição foi aberta em 13 de outubro e será encerrada em 22 de janeiro de 2018.
É indiscutível que o Impressionismo, como estilo e também como moda, colocou Millet em segundo plano. De repente, para enquadrar o artista ao gosto do dia, o Museu d’Orsay propôs, de setembro de 1998 a janeiro de 1999, uma exposição que reunia Van Gogh e Millet; o primeiro sempre devotou ao segundo, seu antecessor, uma admiração constante, seja como modelo artístico, seja como exemplo de honestidade e coragem. Mas essa exposição só fez confirmar a glória de Van Gogh…
Já a exposição de Lille possibilita compreender as diversas objeções que foram e são feitas a Millet.
Não há dúvidas de que diversas obras dos anos 1850 ̶ e indo até o famosíssimo Angelus ̶ testemunham uma vontade de exemplaridade, oscilando entre o pitoresco e uma maneira de destacar as silhuetas da ambientação da paisagem, como que para sublinhar a pura presença. Nesses primeiros anos, um pensamento subjacente anima Millet, um pensamento pleno de religiosidade e que pretendia, dissimulando-o in extremis, reencontrar, entre os ceifadores da Normandia, os Booz e Ruth bíblicos. Santa simplicidade que se reencontra em Les paysans rapportant un veau à la ferme, pintura que realça o domínio do imaginário (embora muito admirada por Van Gogh), ou, a fortiori, esse Paysan greffant un arbre, cuja presença na tela, como afixada ao real, com mulher e criança, esboça uma silhueta teatralizada e não, absolutamente, uma restituição alegorizada do real, que, nessa época, constitui a marca e a grandeza de Courbet.
O equívoco atinge o auge com o Angélus, que parece confinar Millet à religiosidade, com suas duas silhuetas rígidas como estátuas na submissão de seu gesto. Essas personagens parecem representar um a priori constante, limitando o gesto pictural, o artifício da rusticidade sagrada.
No entanto, uma obra como Homme à la houe, que representa a dinâmica extenuante e a ligação do trabalhador à terra, indica que existe um Millet aliviado da “pretensão” que Delacroix recriminava em sua obra. Desse modo, o interesse dessa exposição em Lille reside nestes e em outros detalhes.
La fileuse, chevrière auvergnate, pela sua marcha dinâmica e uma representação destacada de seu rebanho, manifesta que, durante os anos 1860, Millet faz jus a uma ordem de simbiose ativa entre os mundos humano, animal e terrestre. É o que acontece igualmente com as suas Fagoteuses ̶ ele pode então atingir, com outro meio e outras bases, a “alegoria do real”, cara a Courbet. Esta é a magnificência de Printemps e dessas duas outras obras-primas (ambas no Metropolitan Museum of Art de Nova York), como Les meules d’Automne e Gardeuse de dindons. Entretanto, ao contrário de Courbet, de quem ele não alcançou talvez a mesma grandeza, Millet transfigura o real, salvaguardando a sua visão, que ele restitui, de forma admirável, nas telas Nuit étoilée e Dénicheurs de nid.
Assim, quando a grade de leitura ̶ que faz do Impressionismo a passagem obrigatória sem a qual se é desqualificado (e Millet não é “pré-impressionista”) ̶ deixar de funcionar no sistema do mercado de arte (sob o risco de diminuir certas glórias e enaltecer outras ainda mais, como Cézanne), será conveniente dar de novo a Millet um lugar, não distante de Courbet. Tendo progressivamente abandonado o desejo de sacralizar o real, ele soube restituir dinamicamente uma alegoria segunda, que pode ser classificada como “a memória do real”.
Confira no vídeo a seguir mais imagens das obras de Millet, ao som do Adágio do Concerto para Violino em Sol Maior, de Max Bruch