(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Súplica
Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a tua lírica de xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota ̶ humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
̶ mas não nos tirem a música!
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!
E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
̶ Por isso pedimos,
de joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!
̻ ̻ ̻
[2]
Porquê
Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?
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[3]
Canção fraterna
Irmão negro de voz quente
o olhar magoado,
diz-me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?
E o poço da melancolia
no fundo do teu olhar?
Foi a vida? o desespero? o medo?
Diz-me aqui, em segredo,
irmão negro.
Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz, sentimento
e magia.
Há nela a nostalgia
da liberdade perdida,
a morte das emoções proibidas,
e saudade de tudo que foi teu
e já não é.
Diz-me, irmão negro,
quem a fez assim…
Foi a vida? o desespero? o medo?
Mas mesmo encadeado, irmão,
que estranho feitiço o teu!
A tua voz dolente chorou
de dor e saudade,
gritou de escravidão e veio murmurar à minha alma em ferida
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar…
Veio, de manso murmurar
que a tua canção é minha.
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[4]
Lição
Ensinaram-lhe na missão,
Quando era pequenino:
“Somos todos filhos de Deus; cada Homem
é irmão doutro Homem!”
Disseram-lhe isto na missão,
quando era pequenino.
Naturalmente,
ele não ficou sempre menino:
cresceu, aprendeu a contar e a ler
e começou a conhecer
melhor essa mulher vendida
̶ que é a vida
de todos os desgraçados.
E então, uma vez, inocentemente,
olhou para um Homem e disse “Irmão…”
Mas o Homem pálido fulminou-o duramente
com seus olhos cheios de ódio
e respondeu-lhe: “Negro”.
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[5]
Magaíça
A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios,
seu coração apertado na angústia do desconhecido
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
dos sonhos insatisfeitos do mamparra.
E um dia,
o comboio voltou arfando, arfando…
oh Nhanisse, voltou!
E com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
é um ser deslocado,
embrulhado em ridículo.
Às costas − ah, onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça? −
trazes as malas cheias do falso brilho
dos restos da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
Magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas,
lá nas minas do Jone…
A mocidade e saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.
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Glossário
cubata : choupana de negros africanos
machamba : terreno agrícola para produção familiar
magaíça : antiga denominação dada aos emigrantes moçambicanos que iam trabalhar nas minas da África do Sul
mamparra : palavra depreciativa para o emigrante moçambicano que ia trabalhar nas minas da África do Sul
xingombela : dança tradicional do sul de Moçambique
Perfil
Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo) em 20 de setembro de 1926 e morreu em Cascais, Portugal, em 4 de dezembro de 2002. É autora de um único livro de poemas, intitulado Sangue Negro, publicado apenas em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (Aemo), em homenagem aos 75 anos da autora. O livro condensa a sua produção poética de 1948 a 1951. Os seus textos tinham sido publicados em jornais, como O Brado Africano, e em revistas, como a brasileira Sul. Desde cedo engajou-se na luta pela libertação de seu país do colonialismo português. Por isso, os seus poemas despertaram consciências, acenderam revoltas e dialogaram com o Movimento da Negritude, conforme lembra Carmen Lucia T. Secco, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em prefácio à edição brasileira. Por confrontar o sistema colonial, foi presa e deportada para Portugal, junto com outros intelectuais moçambicanos. Viaja pela América, vive em Paris e continua as suas atividades pela independência, atuando como jornalista e tradutora. Ainda segundo Carmen Lucia, a poetisa “inaugura a cena literária feminina moçambicana, protestando contra as opressões sofridas pelas mulheres.” Em outra etapa de seu ensaio, afirma que “A voz de Noémia não é apenas feminina; é, também, coletiva. É uma voz tutelar, fundadora da poesia moçambicana. É uma voz plural, prometeica, que, epicamente, assume uma heroicidade salvacionista, na medida em que se declara como a que iluminará os destinos dos irmãos africanos marginalizados.” Em 2016, Sangue Negro foi lançado no Brasil pela editora Kapulana, de São Paulo, na série Vozes da África.
Acho que o país devia apostar mas na poesia para educação dos jovens e na musica educativa porque a nossa socidade e uma lastima…
ES NECESARIO APOSTAR Y DAR RELEVANCIA A LA POESÍA Y A LA MÚSICA, PARA QUE LLEGUÉ A UNA GRAN MAYORÍA, ESPECIALMENTE A LOS JÓVENES ESTUDIANTES,. SERÍA ESTO UN APORTE MUY IMPORTANTE EN LA FORMACIÓN DEL EDUCANDO EN TODOS LOS NIVELES..
Gostei. Obrigada.
gostei muito dos poemas,me espiraram e tenho o sonho de algum dia meus poemas tambem serem publicados
É necessário que se dê valor a poesias, é com base nelas que nós os jovens Teremos um certo conhecimento.
A poesia e a música são materiais que devem servir de mensagens e encorajamento para nós!
Mas hoje em dia está quase tudo perdido principalmente na área musical