Acabei de visitar a mostra História das Sexualidades, no Masp. O que mais me impressionou foi a sala dedicada aos Totemismos, em que vaginas e pênis ganham algumas vezes inusitadas representações, outras surpreendem pela estranha obviedade. Não fiquei impressionada por inocência ou ingenuidade ou pudor. Deu-se, isto sim, o estalo de que estamos, todos e todas, mais familiarizados com as imagens do sexo masculino – dos obeliscos aos punhais, tudo que cresce e penetra nos cerca com “naturalidade” na casa e na rua.
Flagrei-me curiosa observando de perto as pinturas de Betty Tompkins que recortam o sexo feminino e o expõem em diferentes configurações anatômicas. Nove telas em que o claro e o escuro empurram-se para desenharem curvas, fendas, protuberâncias, aberturas, rugosidades, as mais singulares. Alguém poderia lembrar ali A Grande Muralha da Vagina, de Jamie McCartney, mas o que me atravessou a memória naquela sala dos totens foi que, certa feita, um amante me elogiou o formato íntimo. E eu, desconcertada, me dei conta de que não poderia emitir nenhum juízo estético sobre este fragmento de mim mesma porque simplesmente o ignorava; em mim e em todas as mulheres com quem convivi ao longo da vida. O contrário vivem os homens: conhecem mutuamente seus falos nos banheiros da escola, da rodoviária ou do escritório. Nós mulheres estamos fechadas em concha.
Cuca, chimba, chucha, zorra, micha, bicho, pusa, pucha, buceta – em outra sala denominada Linguagens, a artista espanhola Cristina Lucas identifica os países da América Latina pelos nomes que dão aos órgãos feminino e masculino. A obra constitui-se como um díptico, mas não vou me dar o trabalho de dizer os vários e conhecidos nomes da coisa masculina. O falo teve muito tempo para gozar da dialética totem e tabu. Interessa aqui dizer, escrever, expor esses nomes que guardam, que fecham, que escondem. A vagina experimenta o devir da abertura que mostra seu fechamento há pouco no Ocidente. E mesmo assim, quando se mostra, provoca um virar de cabeças sem fim. Vale lembrar o caso da artista japonesa Magumi Igarashi que, em 2015, foi processada por obscenidade, que se caracterizava por produzir objetos cotidianos como caiaques e almofadas a partir de um molde que escancarava a sua própria concha. Enquanto isso, em Goiânia, convivemos cotidianamente sem reclamar com os “espetos” da Avenida 85.
Uma das mais polêmicas representações da vulva feminina foi pintada por Courbet no final do século XIX. Em palestra para a Academia Brasileira de Letras acontecida em 2012, o querido professor Jorge Coli foi censurado ao analisar o quadro A Origem do Mundo, graças às palavras que constituem o campo semântico de seu objeto. Há várias especulações sobre esse interdito que transformou a vagina em um tema “perseguido”, a mais convincente ainda me parece ser aquela que identifica na fenda a insuportável ambiguidade da vida/maternidade/santificação e do gozo/vadiagem/demonização. Não podemos gozar a não ser para reproduzir. Melhor ainda se reproduzirmos sem nunca termos gozado. Gozar é coisa de buceta à toa!
E olha que o gozo feminino, quando pode ser discutido, também é cercado de interesses e mistificações. Diante da imensa e sinuosa vulva de espuma cor-de-rosa da Cibele Cavalli Bastos, pensei no velho Tirésias que ganhou o dom da previdência porque havia conhecido tanto o gozo masculino quanto o gozo feminino porque tivera a oportunidade de viver no corpo de uma mulher por sete anos (seja lá o que sete significasse naquele tempo sem tempo dos gregos arcaicos). Instigado a comparar a intensidade dos prazeres do homem e da mulher, teria respondido: “se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem fica com uma”. Não é gratuito que nosso prazer foi, rapidamente, na história do Ocidente, transformado em tabu. Valei-nos, Oswald: pela “transformação permanente do tabu em totem”!
texto maravilhoso! Adorei! Que venham outros!