A pegadinha me foi feita por Marco Antonio Coutinho Jorge no coquetel de lançamento de seu novo livro, Fundamentos da Psicanálise. De Freud a Lacan − A Prática Analítica (volume 3), no Museu de Arte Contemporânea em Goiânia. Era uma agradável noite de sábado, e há muito não via Marco Antonio, meu colega de formação em psicanálise no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, lá pelos anos 80. Com simpatia, ele se lembrou dos velhos tempos. Elogiei sua coragem de falar da técnica freudiana, hoje arrogantemente esnobada por alguns e ignorada por muitos.
O volume 3 conclui a trilogia Fundamentos da Psicanálise. De Freud a Lacan e nele o autor esclarece com sua elegante e suave mestria alguns dos mais importantes conceitos clínicos da teoria psicanalítica, entre eles transferência, resistência, repetição, elaboração, interpretação e construção. Além dos exemplos de sua clínica, Marco Antonio nos brinda com articulações entre a psicanálise intensiva – a do consultório – e a psicanálise extensiva, em que se debatem questões da vida cotidiana e da cultura, da música, do cinema e da literatura. A trilogia iniciada com um estudo sobre as bases conceituais da psicanálise, seguida de uma investigação sobre a clínica da fantasia e concluída com um levantamento da prática analítica, é de leitura indispensável para os que se engajam na formação psicanalítica, sem deixar de suscitar o interesse de um público mais amplo e culto.
Me sinto um pouco responsável pela presença de Marco Antonio em Goiânia, onde fundou uma seção do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, do qual é membro e diretor. É que o convidei a participar de algumas jornadas na Fazenda Freudiana, onde esteve mais de uma vez, há alguns anos, quando ele se surpreendeu com o interesse de muitos jovens pela psicanálise. Me fez muitas perguntas sobre como era viver em Goiânia. Perguntou, respondi. Hoje vejo com alegria a influência de sua leitura criativa em psicanálise.
A escola que fundou em Goiânia dá seus primeiros frutos, entre eles a publicação de um livro que resulta de um trabalho coletivo – Futuros da Psicanálise , organização de Altair José dos Santos e Marcela Toledo França de Almeida. O livro resulta de uma interlocução durante o IV Encontro Nacional do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise e o II Encontro Internacional da Rede Americana de Psicanálise, realizados em Pirenópolis, Goiás, nos dias 30 e 31 de outubro e 1º de novembro de 2014. Ressalto a importância desses eventos por seu caráter coletivo – não é só um que brilha, não é só um que publica, demonstrando que o Corpo, pelo que dá a ver no momento, não caiu na cilada de instituição psicanalítica semioticamente fechada com formação endogâmica e temerosa de conexões internacionais.
Beatles ou Rolling Stones?, me pergunta Marco Antonio. Respondo-lhe que não tenho por que escolher um ou outro, pra mim os dois, ora um ora outro grupo, depende da disposição momentânea. Ele sabe que a alternativa ou… ou é aprisionante. Como ele mesmo disse durante a palestra que deu antes do coquetel, “tudo começa no três”. Sua trilogia começará um futuro? Ou, quem sabe, Beatles and Rolling Stones, cada um a seu tempo. Ou, ainda, nem Beatles, nem Rolling Stones, e sim Miles Davis, a quem Marco Antonio aprecia. Ou mesmo nem um, nem outro, como costumava dizer MD Magno, de quem fomos alunos: “a psicanálise é a arte de fazer nem nem”.
Seja como for, ele estava brincando, querendo saber se eu estaria atento, desperto (o despertar é um dos seus temas favoritos). Ele estava se divertindo com uma injunção discursiva, aquela que joga o sujeito ou no amor, ou no desejo, ou na pulsão sexual. E é por aí que passo a citá-lo, destacando trechos do seu livro, aqueles que me parecem mais acessíveis ao grande público.
O apelo à alternativa “Beatles e Rolling Stones” (é assim, com e, que ela se escreve à página 127 do livro) seria uma solução que talvez esclareça um dilema contemporâneo: amor ou gozo? Vivemos numa época em que o supereu nos obriga a gozar o tempo todo, vivemos sob o tacão do imperialismo do gozo. Como sair dessa encrenca, que comparece na clínica sob a forma dos discursos sofridos, das queixas intermináveis sobre as traições dos parceiros amorosos? Será que o amor, hoje, está ameaçado pelo gozo? Será que não domina o gozo? Problema e solução.
Primeiro, o problema, apresentado por dois filmes: De Olhos Bem Fechados, última obra-prima de Stanley Kubrick, e o último episódio de Relatos Selvagens, de Damian Szifron. Os dois filmes “abordam com mestria a relação conflitiva entre o eu e o isso”, diz Marco Antonio. O isso, antigamente, era chamado de id , tradução do alemão Es, definido por Freud como a sede de nossas pulsões mais obscuras, agressivas e sexuais. Freud preferia o vernáculo, mas os ingleses traduziram-no pelo termo latino. Por mais que os ingleses tenham adulterado o alemão freudiano, traduzindo pulsão por instinto, dando uma leitura biologizante à psicanálise, não vejo por que desprezar o latim – id, ego, superego – como se ele fosse língua morta, pois ela é a nossa língua materna, e está muito bem viva nos termos da ciência, na biologia, na astronomia; a gente se esquece que o português é língua neolatina?
Voltando aos filmes. Alice – De Olhos Bem Fechados – foi seduzida numa festa por um galanteador húngaro que lhe pergunta: “Você não acha que um dos encantos do casamento é tornar o fingimento uma necessidade para ambas as partes?”. A perguntinha, não de Alice, mas para Alice, cai num terreno fértil. Ela revela ao marido que sentiu forte atração sexual por um marinheiro durante a viagem de lua de mel. Sua franqueza é inusitada e potencializada pela maconha. O marido, devastado depois dessa revelação, tenta penetrar numa orgia “enorme e soturna”, em que os participantes nus usam máscaras. Descoberto, ele é posto para fora. Uma mulher que o ajuda é assassinada, o amigo que lhe dera a senha para penetrar na orgia também desaparece. Quer dizer, não há penetração, tudo teria acontecido meramente na fantasia (já seria muito). E a meu ver, o encanto do filme consiste justamente nisso: não há “penetrações”, e a magia de Kubrick é manter a expectativa no máximo de tensão – tesão – e … nada acontece.
Ou, o Nada é que seria o acontecimento? Não sei se Marco Antonio partilha dessa minha opinião. Ele põe em destaque a ideia de que as máscaras são emblemáticas dos véus necessários ao convívio social. Mas elas se revelam frágeis diante das demandas da pulsão, do tesão. O filme de Kubrick mostra uma batalha entre o amor e o gozo. Aparentemente, a vitória é do amor, mas o preço pago é pesado. O casal visita o horror da pulsão em busca de satisfação sexual “ilimitada e inominável”, diz Marco Antonio. Sua conclusão: “ a máscara se tornará a referência necessária e levada para o próprio leito do casal, nunca mais poderá ser esquecida. Eles voltam a se amar, mas agora ambos sabem o quanto o gozo pode ser devastador para o amor caso este não consiga conviver com ele”. Vitória dos Beatles?
Por sua vez, o último episódio de Relatos Selvagens, de Damián Szifron, seria uma vitória dos Rolling Stones? Trata-se do “ato de desmascaramento [mais uma vez, a máscara] vertiginoso que a pulsão sabe impor à homeostase [equilíbrio] imaginária do eu, na qual o amor encontra sua morada serena, embora instável”. Numa festa de casamento, que funciona como metáfora da guerra entre amor e gozo, vemos “o esforço que a relação amorosa faz – sem conseguir êxito absoluto – para barrar os impulsos irrefreáveis da pulsão sexual”. A pulsão arromba a festa. Destrói a imagem do amor perfeito. A noiva descobre que uma das convidadas é amante do seu noivo. Enraivecida, sedenta de vingança, ela trepa com o primeiro que passa, um garçom, que conseguiu demovê-la da tentativa de pular do alto do prédio, onde o marido, boquiaberto, a tudo assiste. “Mas surpreendentemente tudo acaba bem – quer dizer, o casamento se realiza e, para espanto dos convidados, que fogem diante do horror desvelado, o casal mantém uma relação sexual no salão da festa”, diz Marco Antonio. “E a moral da história é bem psicanalítica: se sabemos, com Lacan, que só o amor permite exercer algum freio sobre o gozo – repito mais uma vez a fórmula: ‘Só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo’ –, por outro lado, também cabe ao amor abrir mão de tentar dominar o gozo inteiramente.”
Os dois filmes seriam um breve retrato da sociedade contemporânea. Como lidar com os conflitos entre amor e gozo? O amor está perdendo terreno, sua “permanência”, como diz Marco Antonio, está muito mais ameaçada pelo gozo? Será que, “para sobreviver, só resta ao amor acatar a diferença que a presença do estranho gozo do outro impõe, um gozo que, por não poder ser freado, se coloca como obstáculo para o amor”? Os psicanalistas reconhecem que Freud contribuiu para a liberação cada vez maior da sexualidade. Seu gesto de suspender o recalque da sexualidade – pela via da fala, do discurso, da linguagem, da palavra criativa – foi um ato simbólico que teve e tem até mesmo efeitos terapêuticos, além de outros efeitos de liberdade e desilusionamento. Mas teria havido uma espécie de mutação cultural que hoje impõe a nós outros não mais a repressão, e sim a obrigação de gozar? O imperativo do gozo seria a nova mensagem do supereu, da instância psíquica responsável pela lei, pelo dever? Gozar tudo sempre aqui agora sem parar até morrer de tanta “satisfação”? As drogas o confirmam.
Surpreendentemente, os Rolling Stones não deram o último passo, ainda não. Como os Beatles, nasceram na Inglaterra, ambos em 1964. Mas os Stones duram até hoje, ao contrário dos Beatles, que só sobreviveram dez anos como grupo, falando de amor (dá menos ibope que o gozo?). A marca dos Stones é o rock Satisfaction, cujo refrão (palavra que vem de “refrear”, segundo ouvi de José Miguel Wisnik, craque de letra e música) repete: “I can’t get no, satisfaction, but I try, but I try, but I try. Satisfaction!”, o que, para Marco Antonio, é “sem dúvida a melhor definição freudiana da pulsão que podemos encontrar”. Ninguém acredita que os Stones não consigam “satisfaction”, são exuberantes suas demonstrações de gozo. Mas, fingidamente, dizem que estão tentando, estimulando a moçada a um bora lá, não desistam, quem sabe. Ou será que “satisfaction” quer dizer outra coisa, a busca de uma satisfação impossível de obter, talvez, uma insatisfação, em última instância. O gozo satisfaz? “Ambos os grupos, criados simultaneamente, parecem nos ensinar que o amor, que se quer eterno, perece; ao passo que a pulsão, com sua imediaticidade impulsiva, tem uma força inesgotável e uma existência duradoura”, diz Marco Antonio. Amor e gozo, duas forças titânicas que estão em guerra dentro de cada um de nós. Marco Antonio aposta que “o gozo é mais forte do que o amor”.
Seguindo Lacan, admite que o amor vem em suplência à inexistência da relação sexual, enquanto a pulsão é o que inscreve a “busca irrefreável de um gozo jamais atingido”. O amor, esse tolinho, esse encontro de dois saberes inconscientes, esse frágil prêmio de consolação, seria o que “palia [ que verbo] essa busca e estabiliza a relação do sujeito com o objeto do desejo”. A pulsão não está nem aí, impõe-se, à revelia do amor. Marco Antonio recorre a Freud para lembrar que o amor deve aquiescer ao gozo, “de forma a ganhar permanência”. E acrescenta que “não se pode ficar apenas cantando o amor com os Beatles, assim como não aguentamos apenas dançar e rebolar com Mick Jagger até os noventa anos”. A psicanálise propõe um pacto simbólico que venha apaziguar a guerra entre “o imaginário do amor e o real do gozo para trilhar essa estrada da vida”.
Para concluir, uma pontinha de dúvida: “Será que foi esse amor que os Beatles cantaram em suas composições, amor que, no fundo, sempre se depara com as tempestades dessa “Long and winding road” pulsional?” Nessas horas é que me lembro da troca de cartas entre Freud e Einstein. Freud reconheceu o inevitável da guerra e, mesmo assim, sem esperanças, propôs o amor. Uma saída puramente individual, até mesmo singular, de quem se avaliava como um pacifista “constitucional”, idiossincrático. O que será que o Velhão quis dizer?
Confira abaixo o trailer dos filme De Olhos Bem Fechados:
Leveza, elegância e rigor! São essas as impressões que ficam da leitura do texto do psicanalista Roberto Mello. Aliás, talvez sejam, em minha opinião, essas as marcas da robusta contribuição de Roberto Mello para a presença da psicanálise na cena cultural e clínica de Goiás.
Trata-se de um texto limpo e lindo que não recua frente à tensão que pulsa em todo falante nos meandros do amor e do gozo.
Obrigado!