Para quem não conhece, apresento aqui a famosa casquette de Charles Bovary. Para quem conhece, um refresco de memória:
Era um daqueles chapéus compósitos, em que se encontram elementos da barretina de pele, do chapska, do chapéu arredondado, do barrete de lontra e do gorro de algodão, enfim, uma daquelas pobres coisas cuja feiura silenciosa tem profundezas de expressões, como o rosto de um imbecil. Ovoide e repleto de barbatanas, o chapéu começava por três rolos circulares; depois, losangos de veludo e pelos de coelhos alternavam-se, separados por uma faixa vermelha; a seguir, vinha um feitio de saco que terminava em um polígono acartonado, coberto por um complexo bordado em sutache do qual pendia, na extremidade de um cordão muito fino, um entrelaçamento de fios dourados que formavam uma borla. Era novo; a viseira brilhava (cap. IV da edição da Nova Alexandria,com trad. de Fúlvia Moreto).
A descrição desse chapéu está nas primeiras páginas do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Tem a função metonímica de simbolizar seu dono: um sujeito igualmente compósito, que sobrepõe elementos heterogêneos e pouco harmônicos entre si. Poderia ser associado ao monstro do Dr. Frankenstein, mas nem de longe tem sua potência destrutiva, nem nos permite questionar os limites da razão. Ao contrário, é fraco, pacífico, medíocre. E isso me faz pensar nas diferentes personagens medíocres que conheci na literatura moderna. Deve haver muito mais, destaco, contudo, aqueles que me marcaram pessoalmente, como o homem do subsolo de Dostóievski, as figuras do Primo Basílio de Eça, o Brás Cubas de Machado, o Gabriel de James Joyce, o Félix Krull de Thomas Mann, o Mersault de Camus, a Macabéa de Clarice.
É claro que todas essas personas de papel merecem uma vírgula e um “mas”: o homem do subsolo é medíocre, mas transformou a neurose em arte literária; as figuras de Eça são medíocres, mas estão enredadas num discurso épico atualizado; Brás Cubas é medíocre, mas teve a esperteza de inscrever seu nome na tradição luciânica; Gabriel, personagem do conto Os Mortos, é medíocre, mas vive uma epifania reveladora de sua condição; Félix Krull é medíocre, mas insuperável impostor; Mersault é medíocre, mas matou uma pessoa e construiu uma tragédia em tempos em que as tragédias, no sentido antigo do termo, tornaram-se impossíveis; Macabéa é medíocre, mas sua mediocridade constitui uma ponta de lança para a transformação da narrativa brasileira. Somente a mediocridade de Charles Bovary permanece brutal, sem adversativas, solitária como um chapéu fora de moda. O chapéu de Charles Bovary me comove.
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A feiura silenciosa e profunda do chapéu é tão incômoda que, em 2002, o romancista e crítico literário Michel Boujut convidou 23 artistas para desenharem, costurarem, pintarem a “novidade” imaginada por Flaubert. Comprem o livro ou fiquem satisfeitos com a prova da capa:
Qual não é nossa surpresa ao perceber que, na prática, trata-se de um objeto impossível, cuja condição de existência é a linguagem da imaginação. As cartas embaralham-se: que fazer das definições realistas que sempre mencionaram a literatura flaubertiana como um exemplo de objetividade? A querela da mímesis se dissolve. Aqui a palavra precede a coisa, inventa-a, com a única finalidade de fazê-la falar em lugar de uma pessoa – uma pessoa que pouco diz ao longo do romance. Charles nasce (bem e mal) dito pelo chapéu. A observação de Mario Vargas Llosa, aquela que chama atenção para o fato de no romance Madame Bovary as emoções e as ideias darem a impressão de possuírem corpo e intimidade, permanece esclarecedora – da complexidade da arte literária e de sua relação com o mundo da vida. Pena que 150 anos depois da publicação de Madame Bovary, a imbecilidade parece não ser mais privilégio reflexivo das páginas dos romances. Os chapéus ridículos são muitos, variados e assustadoramente reais.
Parabéns professora Tarsilla