Os seis capítulos do livro Seis Modos de Ver a Cidade, de Tadeu Alencar Arrais, recortam temas que, a partir do olhar do geógrafo goiano, nos conduzem numa pequena viagem pela cidade. Ler o mapa, a morfologia, a ecologia, a técnica, a paisagem e o cotidiano são, para o autor, também modos de “aproximação” do que é urbano. Inspirado no cinema e na literatura, Arrais se coloca na escrita como um viajante, que iniciou o trajeto aos 15 anos, quando, do alto de uma estrutura de concreto, um novo ponto de vista da cidade o convidou a pesquisar sobre a natureza do fenômeno urbano. Filmes e romances permeiam e interligam os argumentos que descrevem seus modos de ver a cidade. De Balzac a Jan Gehl, de Metrópolis a Aquarius, o livro é denso de dados e referências, sem, contudo, parecer acadêmico, o que torna a leitura agradável e obrigatória para quem, como nós, sente prazer em viajar pelo universo urbano.
Primeiro capítulo, o mapa. Mapas são o “discurso gráfico” mais eficiente para nos apresentar à cidade. Os primeiros mapas produzidos revelavam o relevo (colinas, campos), os rios (os elementos naturais), comunicavam rotas e cidades a serem conquistadas em desenhos subjetivos e ilustrativos. Mas também nos revelam a história quando o desenho das muralhas medievais, suas torres e portões delineavam um modo de ver o mundo, um tempo em que a divisão campo/cidade era clara e a busca por proteção do sítio urbano marcou esse elemento como o principal na cartografia até o século XIX. Com o crescimento das aglomerações e as iniciativas de planejamento urbano, os mapas ganharam outras escalas (aproximação de áreas para turistas, por exemplo) e seguem acompanhando a evolução das cidades e da tecnologia.
Uma segunda aproximação que visa à compreensão do espaço urbano é a leitura de sua morfologia. A escolha de um terreno para edificar uma cidade sempre considerou algum tipo de estratégia em sua ocupação. Desde Atenas (com sede no topo de uma colina) até a cidade do Rio de Janeiro (com sede cenográfica implantada entre a montanha e a floresta), a escolha dos sítios das cidades sempre se justificou num enredo morfológico. A presença da água, o ouro e a estrada de ferro são elementos desse enredo, elementos que fundam as cidades, enquanto a morfologia de seu sítio permite entender os caminhos de sua expansão e as formas de circulação internas. Um exemplo é a cidade de Santiago, capital do Chile, limitada a leste pela Cordilheira dos Andes.
Outra característica da relação morfologia e cidade são a sedentarização e o êxodo. O movimento dos grupos humanos, ao longo da história da humanidade, acompanhou a dinâmica de grandes rios e a capacidade do homem de conviver com eles (dezenas de cidades são fundadas a partir de portos marítimos no início da urbanização do planeta), além do que foram cidades mediterrâneas que fizeram a ligação entre o Ocidente e o Oriente urbanizado. Seja num sítio de relevo plano (Brasília), seja montanhoso (Salvador), a morfologia pode explicar a fragmentação espacial das cidades até o século XX, fragmentação que se mantém na cidade do século XXI mesmo com os avanços tecnológicos.
A ecologia na cidade, descrita no terceiro capítulo como a ecologia urbana, é conceito bem explorado pelo historiador americano Mike Davis, quando este apresenta as “relações causais entre o clima, a geologia, o relevo e os eventos sociais, em um perverso ciclo de riscos não socializados”. Deslizamentos, enchentes, hipotermia, atropelamento, latrocínio, solidão, fome, epidemias, queimadas são riscos presentes em qualquer cidade grande no planeta hoje, e a ecologia urbana se torna ciência no início do século XX com o aprofundamento dos estudos das relações homem/planeta. Com Davis, uma “nova” ecologia da cidade deve considerar também os processos de adaptação da fauna e da flora naturais ao ambiente urbano, sendo que o principal produto de adaptação é o próprio homem.
Há que se destacar que não existe equilíbrio (compensação na ecologia regional) quando da formação de áreas urbanas; ao contrário, o que se observa é uma drenagem dos recursos naturais de uma determinada região para a construção de cidades (madeira, água, campos para produzir alimentos, minérios, plástico). As consequências do consumo desenfreado desses recursos naturais é o cenário de catástrofes a que assistimos nos últimos anos. Catástrofes urbanas. A ecologia da cidade é, portanto, ecologia do consumo, e os riscos desse desequilíbrio não são socializados, ou seja, apenas uma parte (a mais pobre) da população paga o preço dos desastres. Alternativas para a crise ambiental global podem estar exatamente dentro das cidades, no consumo eficiente. Porém, nosso modelo de urbanização (técnica) ainda prescinde de respeito (adaptação) ao meio ambiente.
Olhar para a evolução da técnica é um modo de olhar para a evolução da cidade que, ao longo da história, tornou-se “o lugar de divulgação e celebração” das invenções. A técnica organiza o cotidiano e as atividades humanas quando os artefatos (ferramentas, máquinas) e máquinas (em rede) imprimem o ritmo da cidade e do conjunto da sociedade. O domínio de novas técnicas demarca tempos de transformação da sociedade, como a invenção da energia elétrica. A cidade moderna funciona com redes interligadas de comunicação e transporte, as quais passam a ser naturalizadas pelo citadino quando não pensa como elas funcionam. O homem se distancia do que é produzido coletivamente, e a cidade passa a ser “lugar privilegiado, tanto para a alienação quanto para a emancipação”.
A monumentalidade, atributo funcional da cidade desde Atenas, assume os skylines das megacidades na disputa pelo edifício mais alto, com publicidade da mais avançada técnica de reprodução da vida diária. Porém, a técnica − também a serviço do consumo − apresenta a cidade contemporânea como que em camadas das fases de sua evolução, podendo ser encontrados lado a lado lugares de alto padrão de organização do espaço tecnológico e lugares sem infraestrutura mínima para a reprodução da vida diária. Essa dualidade é funcional, interdependente, e confirma a continuidade do modelo de exploração do trabalho inaugurado na era moderna.
A paisagem da cidade, resultante desse trecho da viagem, é a que mais se encontra referenciada na literatura (e nos livros técnicos também) e a mais difícil de interpretar. Um exercício visual é proposto pelo viajante, mas, em alguns casos, a paisagem pode enganar, pois é preciso ficar atento às transformações políticas que antecedem, por vezes, as transformações na paisagem urbana. Paris, uma das cidades mais vezes descritas, inaugurou um modelo de transformação da paisagem a partir das ideias de seu prefeito mais conhecido, Haussmann (1890). Na modernidade, o planejamento ganha o apoio das forças políticas e econômicas (agora hegemônicas) mundiais, ao passo que as bombas lançadas sobre as cidades solicitam trabalhadores para reconstruir paisagens nos lugares mais importantes do planeta.
As antigas e novas paisagens revelam a história, as normas sociais, os modos de morar e identificam sujeitos que nelas habitam. Mas, desde o início deste roteiro, podemos perceber que nosso modo de ver a cidade pode ser conduzido por uma falsa imagem, publicizada pelo urbanismo moderno. A ideia de cidade-jardim, por exemplo, é o modelo atual de cidade contemporânea na construção dos condomínios fechados por todo mundo. O ideal de convivência é relacionado ao aspecto da segurança (mesma estratégia dos muros medievais) que controla, vigia e exclui quem é diferente. A técnica produz uma paisagem-espetáculo para uma sociedade do espetáculo que inclui a paisagem de favelas espetaculares pelo mundo todo.
O cotidiano é onde desembarcamos agora. É o maior capítulo do livro, pois pretende ser a síntese dos modos de ver a cidade. A forma, a exploração do ambiente natural e a técnica exigiram do homem (desde a pólis, atravessando a Idade Média, a cidade industrial, até hoje) uma constante capacidade de adaptação aos espaços nas cidades e na sua relação com o tempo. Mas o tempo chamado produtivo, o tempo “gasto” na experiência do trabalho, é considerado o termômetro da cidade.
Um modelo de economia urbana delineado pelo urbanismo contemporâneo, refuncionalizando a cidade constantemente, modela também parte significativa do cotidiano. O tempo de deslocamento do trabalhador nas grandes cidades, a crise mundial da habitação são características das cidades contemporâneas, sendo que o cotidiano nessas cidades se revela num processo dialético, entre tensão e contemplação. Na reprodução da vida, o conflito e o sofrimento são inevitáveis na cidade, mas este também é o lugar da pluralidade, da criatividade e da liberdade. É o lugar do agrupamento de pessoas, portanto, da possibilidade de novas experiências.
Livro: Seis Modos de Ver a Cidade
Autor: Tadeu Alencar Arrais
Editora: Cânone Editorial
Páginas: 170
Que texto-aperitivo delicioso ! Já quero um exemplar !